sexta-feira, outubro 08, 2010

Organização do Trabalho pedagógico - Leitura complementar


Aula 01 
Texto complementar:
O ensino e o desenvolvimento do pensamento: o ensino desenvolvimental

(LIBÂNEO, 2004)

Na base do pensamento de Davydov está a ideia mestra de Vygotsky de que a aprendizagem e o ensino são formas universais de desenvolvimento mental. O ensino propicia a apropriação da cultura e o desenvolvimento do pensamento, dois processos articulados entre si, formando uma unidade.
Podemos expressar essa ideia de duas maneiras:
a) enquanto o aluno forma conceitos científicos, incorpora processos de pensamento e vice-versa;
b) enquanto forma o pensamento teórico, desenvolve ações mentais, mediante a solução de problemas que suscitam a atividade mental do aluno. Com isso, o aluno assimila o conhecimento teórico e as capacidades e habilidades relacionadas a esse conhecimento.
Para superar a pedagogia tradicional empiricista, é necessário introduzir o pensamento teórico. O papel do ensino é justamente o de propiciar mudanças qualitativas no desenvolvimento do pensamento teórico, que se forma junto com as capacidades e hábitos correspondentes. Em razão disso, escreve Davydov:
“Os conhecimentos de um indivíduo e suas ações mentais (abstração, generalização etc.) formam uma unidade. Segundo Rubinstein, “os conhecimentos [...] não surgem dissociados da atividade cognitiva do sujeito e não existem sem referência a ele”. Portanto, é legítimo considerar o conhecimento, de um lado, como o resultado das ações mentais que implicitamente abrangem o conhecimento e, de outro, como um processo pelo qual podemos obter esse resultado no qual se expressa o funcionamento das ações mentais. Consequentemente é totalmente aceitável usar o termo “conhecimento” para designar tanto o resultado do pensamento (o reflexo da realidade) quanto o processo pelo qual se obtém esse resultado (ou seja, as ações mentais). “Todo conceito científico é, simultaneamente, uma construção do pensamento e um reflexo do ser”. Deste ponto de vista, um conceito é, ao mesmo tempo, um reflexo do ser e um procedimento da operação mental. (1988b, p. 21).”
Nesse sentido, de um lado, a aprendizagem escolar é estruturada conforme o método de exposição do conhecimento científico, mas, por outro, o pensamento que um aluno desenvolve na atividade de aprendizagem tem algo em comum com o pensamento de cientistas que expõem o resultado de suas pesquisas, quando se utilizam abstrações, generalizações e conceitos teóricos. Escreve Davydov:
Embora o pensamento das crianças tenha alguns traços em comum com o pensamento dos cientistas, artistas, filósofos da moral e teóricos do direito, os dois não são idênticos. As crianças em idade escolar não criam conceitos, imagens, valores e normas de moralidade social, mas apropriam-se deles no processo da atividade de aprendizagem. Mas, ao realizar esta atividade, as crianças executam ações mentais semelhantes às ações pelas quais estes produtos da cultura espiritual foram historicamente construídos. Em sua atividade de aprendizagem, as crianças reproduzem o processo real pelo qual os indivíduos vêm criando conceitos, imagens, valores e normas. Portanto, o ensino de todas as matérias na escola deve ser estruturado de modo que, como escreveu Ilenkov, “seja reproduzido, de forma condensada e abreviada, o processo histórico real da gênese e desenvolvimento... do conhecimento”. (1988b, p. 21-22)
As ideias de Davydov sobre o ensino desenvolvimental, lastreadas no pensamento de Vygotsky, podem ser sintetizadas nos seguintes pontos:
a) a educação e o ensino são fatores determinantes do desenvolvimento mental, inclusive por poder ir adiante do desenvolvimento real da criança;
b) deve-se levar em consideração as origens sociais do processo de desenvolvimento, ou seja, o desenvolvimento individual depende do desenvolvimento do coletivo. A atividade cognitiva é inseparável do meio cultural, tendo lugar em um sistema interpessoal de forma que, através das interações com esse meio, os alunos aprendem os instrumentos cognitivos e comunicativos de sua cultura. Isto caracteriza o processo de internalização das funções mentais;
c) a educação é componente da atividade humana orientada para o desenvolvimento do pensamento através da atividade de aprendizagem dos alunos (formação de conceitos teóricos, generalização, análise, síntese, raciocínio teórico, pensamento lógico), desde a escola elementar;
d) a referência básica do processo de ensino são os objetos científicos (os conteúdos), que precisam ser apropriados pelos alunos mediante a descoberta de um princípio interno do objeto e, daí, reconstruído sob forma de conceito teórico na atividade conjunta entre professor e alunos. A interação sujeito-objeto implica o uso de mediações simbólicas (sistemas, esquemas, mapas, modelos, isto é, signos, em sentido amplo) encontradas na cultura e na ciência. A reconstrução e reestruturação do objeto de estudo constituem Didática, identidade profissional e contextualização da prática docente o processo de internalização, a partir do qual se reestrutura o próprio modo de pensar dos alunos, assegurando, com isso, seu desenvolvimento.
O texto de Davydov concretiza a proposição de Vygotsky, ao afirmar que a função de uma proposta pedagógica é melhorar o conteúdo e os métodos de ensino e de formação, de modo a exercer uma influência positiva sobre o desenvolvimento de suas habilidades (por exemplo, seus pensamentos, desejos etc.) (DAVYDOV, p. 32).   
Esse posicionamento leva a afastar ideias pedagógicas correntes em vários países, ora de superpor o desenvolvimento social e emocional ao cognitivo, de sobrepor a atividade prática ao desenvolvimento do pensamento teórico, ou de promover práticas espontaneístas na educação escolar. Para ele, há uma especificidade sócio-histórica dos processos em que as crianças reproduzem as habilidades humanas, de modo a contrapor ao desenvolvimento espontâneo das crianças o papel determinante da educação e do ensino orientado por objetivos (DAVYDOV, p. 38). Escreve Davydov:
É fato conhecido que o ensino e a educação atingem os objetivos mencionados por meio da direção competente da atividade própria da criança. Quando essa atividade é interpretada abstratamente e, mais ainda, quando o processo do desenvolvimento está desvinculado da educação e do ensino, inevitavelmente surgirá algum tipo de pedocentrismo ou de contraposição entre as necessidades da “natureza” da criança e os requisitos da educação (como tem ocorrido, em numerosas ocasiões, na história do pensamento e da prática pedagógicos). Entretanto, a situação se altera substancialmente se a atividade “própria” da criança, de um lado, é compreendida como algo que surge e se forma no processo da educação e do ensino e, de outro, se é vista no contexto da história da própria infância da criança, determinada pelas tarefas socioeconômicas da sociedade e pelos objetivos e possibilidades da educação e do ensino que a elas correspondem. (1988a, p. 54-55)
Todavia, não se pode extrair daí que a crítica ao espontaneísmo resulte numa imposição de conteúdos. Trata-se de compreender a articulação entre apropriação ativa do patrimônio cultural e o desenvolvimento mental humano.
Dadas estas premissas teóricas, o fato de considerar a natureza e os aspectos específicos da atividade infantil não implica a contraposição entre o desenvolvimento e a educação, mas a introdução, no processo pedagógico, da condição mais importante para a concretização das suas finalidades. Neste caso, segundo as palavras de Rubinstein, o processo pedagógico, como a atividade do professor-educador, forma a personalidade da criança em desenvolvimento na medida em que dirige a atividade da criança, ao invés de substituí-la por uma outra coisa. (DAVYDOV, p. 55)
Ainda citando Rubinstein, escreve Davydov:
Qualquer tentativa do educador-professor “de introduzir a cognição e as normas morais, ignorando a atividade própria da criança no domínio desse conhecimento e de normas morais, prejudica [...] as próprias bases do seu sadio desenvolvimento mental e moral, o alimento de suas características e qualidades pessoais”. (DAVYDOV, p. 55)


Aula 02
Didática, identidade e profissionalização docente

Primeira lição para os educadores
(ALVES, 2009)
Tenho uma grande ressonância espiritual com Herman Hesse. Comove-me, de maneira especial, a figura de Joseph Knecht, que é o personagem central do seu livro O Jogo das Contas de Vidro. Joseph Knecht era o líder espiritual, o “magister ludi” de uma ordem monástica que se dedicava ao cultivo da beleza. Ele, mestre supremo, era um músico, intérprete de Bach. Havia atingido o ponto máximo que um homem pode atingir. Não havia altura maior que ele pudesse galgar. No entanto, com a velhice, aconteceu uma mudança no seu coração – igual à mudança que acontecera no coração de Zaratustra, depois de dez anos de solidão no alto de uma montanha. Começou a sentir uma dolorosa nostalgia por uma coisa muito simples, muito humilde. Começou a desejar que os últimos anos de sua vida fossem gastos não nas alturas onde ele se encontrava, mas nas planícies onde os homens comuns viviam. Veio-lhe o desejo de descer (tal como aconteceu com Zaratustra, depois de dez anos nas alturas das montanhas...) para educar uma criança, uma única criança, que ainda não tivesse sido deformada pela escola.
Hesse era apaixonado pela educação. Declarou que, de todos os assuntos culturais, era o único que lhe interessava. Mas o curioso é que, ao mesmo tempo, ele sentia um horror pelas escolas – lugar onde as crianças eram deformadas.
Nós dois poderíamos ter sido amigos. Sentimos igual. A educação é a paixão que queima dentro de mim. E, no entanto, olho para as escolas com desconfiança...
[...]
Não há nada que tenha ocupado tanto o meu pensamento quanto a educação. Não acredito que exista coisa mais importante para a vida dos indivíduos e do país que a educação. A democracia só é possível se o povo for educado. Mas ser educado não significa ter diploma superior. Significa ter a capacidade de pensar. Diplomas somente atestam que aqueles que os têm são portadores de um certo tipo de conhecimento. Mas ser portador de um certo tipo de conhecimento não é saber pensar. É ter arquivos cheios de informações. Nossas universidades são avaliadas pelo número de artigos científicos que seus cientistas publicam em revistas internacionais em línguas estrangeiras. Gostaria que houvesse critérios que avaliassem nossas universidades por sua capacidade de fazer o povo pensar. Para a vida do país, um povo que pensa é infinitamente mais importante que artigos publicados para o restrito clube internacional de cientistas.
É muito fácil continuar a repetir as rotinas, fazer as coisas como têm sido feitas, como todo mundo faz. As rotinas e repetições têm um curioso efeito sobre o pensamento: elas o paralisam. A nossa estupidez e preguiça nos levam a acreditar que aquilo que sempre foi feito de um certo jeito deve ser o jeito certo de fazer. Mas os gregos sabiam diferente: sabiam que o conhecimento só se inicia quando o familiar deixa de ser familiar; quando nos espantamos diante dele; quando ele se transforma num enigma. “O que é conhecido com familiaridade”, diz Hegel, “não é conhecido pelo simples fato de ser familiar”.
Dediquei grande parte da minha vida ao ensino universitário e tive muitas experiências boas. Mas a sensação que tenho é que, nas universidades, já é tarde demais. Os costumes e as rotinas já estão por demais sacralizados. Aqui o processo de deformação a que se referiu Hesse já atingiu um ponto irreversível. Sinto o mesmo que sentiu Joseph Knecht, no inal de sua vida. Quero voltar às origens. Quero me encontrar com o pensamento no momento mesmo em que ele nasce.
Gostaria que vocês lessem de novo aquilo que escrevi no meu último artigo “Animais de corpo mole”. Comecei como Piaget, dos moluscos, animais de corpo mole que têm de fazer conchas para sobreviver. Usei os moluscos como metáforas do que acontece conosco, animais de corpo mole que, à semelhança dos moluscos, temos também de fazer casas para sobreviver.
Toda a atividade humana é um esforço para construir casas. Casas são o espaço conhecido e protegido onde a vida tem maiores condições de sobreviver. Espaço familiar. Piaget sugeriu que o corpo deseja transformar o espaço que o rodeia numa extensão de si mesmo. Esse espaço, extensão do corpo, é a nossa casa. Da necessidade de construir uma casa surge a ciência dos materiais, a física mecânica, a hidráulica, o conhecimento e o domínio do fogo. Da necessidade de comer surgem as ciências das hortas e da agricultura. Da necessidade estética de beleza surge a ciência da jardinagem. Da necessidade de viajar para caçar e comerciar surge a ciência dos mapas, a geografia. Da necessidade de navegar surge a astronomia. E assim vai o corpo, expandindo-se cada vez mais, para que o espaço desconhecido e inimigo ao seu redor se transforme em espaço conhecido e amigo. Até mesmo o universo... Se os homens olharam para os céus e pensaram astronomia e astrologia é porque viram a abóbada celeste e as estrelas como o grande telhado do mundo. O universo é uma casa. Karl Popper, no prefácio do seu livro A Lógica da Investigação Científica, diz da inspiração original da ciência (por oposição àqueles que a pensam como a produção quantitativa de artigos a serem publicados em revistas internacionais) que ela procurava compreender o universo onde vivemos. Era preciso conhecer essa casa enorme onde moramos para nos sentirmos em casa. Um universo que se conhece é um universo que faz sentido. “Quanto a mim”, ele diz, “estou interessado em ciência e em filosofia somente porque eu desejo saber algo sobre o enigma do mundo no qual vivemos e o enigma do conhecimento que o homem tem deste mundo. E eu creio que somente um reavivamento no interesse desses enigmas pode salvar as ciências e a filosofia das estreitas especializações e de uma fé obscurantista nas habilidades especiais dos especialistas e no seu conhecimento e autoridades pessoais.” ‘O enigma do conhecimento que o homem tem deste mundo’: é nesse ponto que a filosofia da educação tem o seu início. Onde nasce o nosso desejo de conhecer? Para que conhecemos? Como conhecemos? Essas são as questões que me preocupam. E é por isso que estou interessado no conhecimento, no momento exato do seu nascimento. Quero vê-lo nascendo, como uma criança sai do corpo da mulher. O conhecimento dos moluscos e de outros animais sobre a arte de construir casas nasce com eles. Mas não nasce conosco. Nascemos ignorantes. Que forças nos arrancaram da ignorância? Que poder penetrou no corpo mole do homem e o engravidou, transformando-o num pensador? Que poder foi esse que transformou o cérebro em útero? E que forças o ajudam a nascer? Para se ter resposta a essas perguntas basta observar esse milagre acontecendo na vida de uma criança.
Primeira lição para os educadores: a questão não é ensinar as crianças. A questão é aprender delas. Na vida de uma criança a gente vê o pensamento nascendo – antes que a gente faça qualquer coisa...

Aula 03
Tendências Pedagógicas I



O Beija-Flor da Floresta
(RAMALHO, 2000)
“Era uma vez uma floresta onde viviam muitos animais. Um dia, começou um enorme incêndio. Todos os animais trataram logo de fugir. Apenas um pequeno beija-flor ficou e tentou salvar a mata, trazendo água no bico para apagar o fogo”. A história, uma das preferidas do professor Sebastião Vieira da Silva, 31 anos, é contada sempre que ele inicia suas aulas de educação ambiental em Ji-Paraná, no interior de Rondônia. “Quero ensinar aos alunos que, se cada um fizer sua parte, a gente conseguirá salvar a floresta”, explica.
“Minha parte acho que é semear pessoas ecologicamente conscientes”. Ensinar preservação é um feito considerável para alguém que, como Sebastião, cresceu vendo seus antepassados desmatarem a floresta e caçarem animais por esporte. “Tanta destruição fez com que eu desejasse proteger a natureza, que me parecia tão indefesa”, conta. Desde que começou a lecionar, em 1991, ele sempre tratou da questão ambiental.
Há dois anos, adotou uma nova estratégia. “Não adianta nada falar sobre meio ambiente na frente do quadro-negro”, diz. “Comecei a levar os alunos para a mata e a mata, para dentro da escola”. Os estudantes fazem caminhadas pela região, plantam mudas no quintal da escola, conversam com agrônomos e biólogos e mantêm uma horta.
A educação ambiental ajuda Sebastião em outras disciplinas. Ele ensina Matemática, medindo canteiros e pesquisando o preço dos produtos regionais; dá aulas de Ciências, estudando plantas medicinais; e alfabetiza, usando os nomes das espécies da fauna e da flora da região. “O aluno se interessa mais quando a gente fala das coisas que ele conhece”.



Aula 04
Tendências Pedagógicas II


Para que servem as escolas?
(YOUNG, 2009)

[...]

Diferenciação do conhecimento e conhecimento escolar
As principais questões sobre o conhecimento, para professores e pesquisadores educacionais, não são primordialmente questões filosóficas como “O que é conhecimento?” ou “Como conhecemos?”. As questões educacionais sobre o conhecimento se referem a como o conhecimento escolar é e deve ser diferente do não escolar, assim como a base em que é feita essa diferenciação.
Embora as questões filosóficas estejam envolvidas, as diferenças entre o conhecimento escolar e o não escolar levam a questões primordialmente sociológicas e pedagógicas. A escolaridade envolve o fornecimento de acesso ao conhecimento especializado incluído em diferentes domínios.
As questões centrais sobre o currículo envolverão:
As diferenças entre formas de conhecimento especializado e as relações entre elas;
Como esse conhecimento especializado difere do conhecimento que as pessoas adquirem no seu cotidiano;
Como o conhecimento especializado e o cotidiano se relacionam entre si;
Como o conhecimento especializado é tratado em termos pedagógicos.
Em outras palavras, como ele é organizado ao longo do tempo, selecionado e sequenciado para diferentes grupos de alunos. Portanto, a diferenciação, no sentido em que eu a estou usando aqui, refere-se:
às diferenças entre o conhecimento escolar e o cotidiano; às diferenças e relações entre domínios do conhecimento; às diferenças entre o conhecimento especializado (por exemplo, física ou história) e o conhecimento com tratamento pedagógico (por exemplo, física escolar ou história escolar para diferentes grupos de alunos).
Por trás dessas diferenças há uma mais básica entre dois tipos de conhecimento.
Um é o conhecimento dependente do contexto, que se desenvolve ao se resolver problemas específicos no cotidiano. Ele pode ser prático, como saber reparar um defeito mecânico ou elétrico, ou encontrar um caminho num mapa. Pode ser também procedimental, como um manual ou conjunto de regras de saúde e segurança. O conhecimento dependente de contexto diz a um indivíduo como fazer coisas específicas.
Ele não explica ou generaliza; ele lida com detalhes. O segundo tipo de conhecimento é o conhecimento independente de contexto ou conhecimento teórico. É desenvolvido para fornecer generalizações e busca a universalidade.
Ele fornece uma base para se fazer julgamentos e é geralmente, mas não unicamente, relacionado às ciências. É esse conhecimento independente de contexto que é, pelo menos potencialmente, adquirido na escola e é a ele que me refiro como conhecimento poderoso.
Inevitavelmente, as escolas nem sempre têm sucesso ao capacitar alunos a adquirir conhecimento poderoso. Também é verdade que as escolas obtêm mais sucesso com alguns alunos do que com outros. O sucesso dos alunos depende altamente da cultura que eles trazem para a escola. Culturas de elite que são menos restritas pelas exigências materiais da vida são, não surpreendentemente, muito mais congruentes com a aquisição de conhecimento, independente de contexto, que culturas desfavorecidas e subordinadas. Isso significa que, se as escolas devem cumprir um papel importante em promover a igualdade social, elas precisam considerar seriamente a base de conhecimento do currículo, mesmo quando isso parecer ir contra as demandas dos alunos (e às vezes de seus pais).
As escolas devem perguntar: “Este currículo é um meio para que os alunos possam adquirir conhecimento poderoso?”. Para crianças de lares desfavorecidos, a participação ativa na escola pode ser a única oportunidade de adquirirem conhecimento poderoso e serem capazes de caminhar, ao menos intelectualmente, para além de suas circunstâncias locais e particulares. Não há nenhuma utilidade para os alunos em se construir um currículo em torno da sua experiência, para que este currículo possa ser validado e, como resultado, deixá-los sempre na mesma condição.
[...]

Aula 05
Escola e professor: função social

A arte de ouvir
(ALVES, 2009)
De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, do viver juntos e da cidadania é a audição. Disse o escritor sagrado: “No princípio era o Verbo”. Eu acrescento: “Antes do Verbo era o silêncio”. É do silêncio que nasce o ouvir. Só posso ouvir a palavra se meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar. Quem fala muito não ouve. Sabem disso os poetas, esses seres de fala mínima. Eles falam, sim. Para ouvir as vozes do silêncio. Veja esse poema de Fernando Pessoa, dirigido a um poeta: “Cessa o teu canto! Cessa, que, enquanto o ouvi, ouvia uma outra voz como que vindo nos interstícios do brando encanto com que o teu canto vinha até nós. Ouvi-te e ouvia-a no mesmo tempo e diferentes, juntas a cantar. E a melodia que não havia se agora a lembro, faz-me chorar...” A magia do poema não está nas palavras do poeta. Está nos interstícios silenciosos que há entre as suas palavras. É nesse silêncio que se ouve a melodia que não havia. Aí a magia acontece: a melodia me faz chorar.
Não nos sentimos em casa no silêncio. Quando a conversa para por não haver o que dizer tratamos logo de falar qualquer coisa, para por um fim no silêncio. Vez por outra tenho vontade de escrever um ensaio sobre a psicologia dos elevadores. Ali estamos, nós dois, fechados naquele cubículo. Um diante do outro. Olhamos nos olhos um do outro? Ou olhamos para o chão? Nada temos a falar. Esse silêncio é como se fosse uma ofensa. Aí falamos sobre o tempo. Mas nós dois bem sabemos que se trata de uma farsa para encher o tempo até que o elevador pare.
Os orientais entendem melhor do que nós. Se não me engano o nome do filme é Aconteceu em Tóquio. Duas velhinhas se visitavam. Por horas ficavam juntas, sem dizer uma única palavra. Nada diziam porque no seu silêncio morava um mundo. Faziam silêncio não por não ter nada a dizer, mas porque o que tinham a dizer não cabia em palavras. A filosofia ocidental é obcecada pela questão do Ser. A filosofia oriental, pela questão do Vazio, do Nada. É no vazio da jarra que se colocam flores.
O aprendizado do ouvir não se encontra em nossos currículos. A prática educativa tradicional se inicia com a palavra do professor. A menininha, Andréa, voltava do seu primeiro dia na creche. “Como é a professora?”, sua mãe lhe perguntou. Ao que ela respondeu: “Ela grita...” Não bastava que a professora falasse. Ela gritava. Não me lembro de que minha primeira professora, Da. Clotilde, tivesse jamais gritado. Mas me lembro dos gritos esganiçados que vinham da sala ao lado. Um único grito enche o espaço de medo. Na escola a violência começa com estupros verbais.
Milan Kundera conta a estória de Tamina, uma garçonete. “Todo mundo gosta de Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que ela ouve mesmo? Não sei... O que conta é que ela não interrompe a fala. Vocês sabem o que acontece quando duas pessoas falam. Uma fala e outra lhe corta a palavra: ‘é exatamente como eu, eu...’ e começa a falar de si até que a primeira consiga por sua vez cortar: ‘é exatamente como eu, eu...’Essa frase ‘é exatamente como eu...’ parece ser uma maneira de continuar a reflexão do outro, mas é um engodo. É uma revolta brutal contra uma violência brutal: um esforço para libertar o nosso ouvido da escravidão e ocupar à força o ouvido do adversário. Pois toda a vida do homem entre os seus semelhantes nada mais é do que um combate para se apossar do ouvido do outro...”
Será que era isso que acontecia na escola tradicional? O professor se apossando do ouvido do aluno (pois não é essa a sua missão?), penetrando-o com a sua fala fálica e estuprando-o com a força da autoridade e a ameaça de castigos, sem se dar conta de que no ouvido silencioso do aluno há uma melodia que se toca. Talvez seja essa a razão porque há tantos cursos de oratória, procurados por políticos e executivos, mas não haja cursos de escutatória.
Todo mundo quer falar. Ninguém quer ouvir.
Todo mundo quer ser escutado. (Como não há quem os escute, os adultos procuram um psicanalista, profissional pago do escutar). Toda criança também quer ser escutada. Encontrei na revista pedagógica italiana Cem Mondialità a sugestão de que, antes de se iniciarem as atividades de ensino e aprendizagem, os professores se dedicassem por semanas, talvez meses, a simplesmente ouvir as crianças. No silêncio das crianças há um programa de vida: sonhos. É dos sonhos que nasce a inteligência. A inteligência é a ferramenta que o corpo usa para transformar os seus sonhos em realidade. É preciso escutar as crianças para que a sua inteligência desabroche.
Sugiro então aos professores que, ao lado da sua justa preocupação com o falar claro, tenham também uma justa preocupação com o escutar claro.
Amamos não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A escuta bonita é um bom colo para uma criança se assentar...
Aula 06
Planejamento I
Caminhos pedagógicos da inclusão
(MANTOAN, 2009)

Toda criança precisa da escola para aprender e não para marcar passo ou ser segregada em classes especiais e atendimentos à parte. A trajetória escolar não pode ser comparada a um rio perigoso e ameaçador, em cujas águas os alunos podem afundar. Mas há sistemas organizacionais de ensino que tornam esse percurso muito difícil de ser vencido, uma verdadeira competição entre a correnteza do rio e a força dos que querem se manter no seu curso principal.
Um desses sistemas, que muito apropriadamente se denomina “de cascata”, prevê a exclusão de algumas crianças, que têm déficits temporários ou permanentes e em função dos quais apresentam dificuldades para aprender.
Esse sistema contrapõe-se à melhoria do ensino nas escolas, pois mantém ativo o ensino especial, que atende aos alunos que caíram na cascata, por não conseguirem corresponder às exigências e expectativas da escola regular.
Para se evitar a queda na cascata, na maioria das vezes sem volta, é preciso remar contra a correnteza, ou seja, enfrentar os desafios da inclusão: o ensino de baixa qualidade e o subsistema de ensino especial, desvinculado e justaposto ao regular.
Priorizar a qualidade do ensino regular é, pois, um desafio que precisa ser assumido por todos os educadores. É um compromisso inadiável das escolas, pois a Educação Básica é um dos fatores do desenvolvimento econômico e social. Trata-se de uma tarefa possível de ser realizada, mas é impossível de se efetivar por meio dos modelos tradicionais de organização do sistema escolar.
Se hoje já podemos contar com uma Lei Educacional que propõe e viabiliza novas alternativas para melhoria do ensino nas escolas, estas ainda estão longe, na maioria dos casos, de se tornarem inclusivas, isto é, abertas a todos os alunos, indistinta e incondicionalmente. O que existe em geral são projetos de inclusão parcial, que não estão associados a mudanças de base nas escolas e que continuam a atender aos alunos com deficiência em espaços escolares semi ou totalmente segregados (classes especiais, salas de recurso, turmas de aceleração, escolas especiais, os serviços de itinerância).
As escolas que não estão atendendo alunos com deficiência em suas turmas regulares se justificam, na maioria das vezes, pelo despreparo dos seus professores para esse fim. Existem também as que não acreditam nos benefícios que esses alunos poderão tirar da nova situação, especialmente os casos mais graves, pois não teriam condições de acompanhar os avanços dos demais colegas e seriam ainda mais marginalizados e discriminados do que nas classes e escolas especiais.
Em ambas as circunstâncias, o que fica evidenciado é a necessidade de se redefinir e de se colocar em ação novas alternativas e práticas pedagógicas, que favoreçam a todos os alunos, o que, implica na atualização e desenvolvimento de conceitos e em aplicações educacionais compatíveis com esse grande desafio.
Muda então a escola ou mudam os alunos, para se ajustarem às suas velhas exigências? Ensino especializado em todas as crianças ou ensino especial para deficientes? Professores que se aperfeiçoam para exercer suas funções, atendendo às peculiaridades de todos os alunos, ou professores especializados para ensinar aos que não aprendem e aos que não sabem ensinar?
[...]
Que ações implementar para que a escola mude ?
Para melhorar as condições pelas quais o ensino é ministrado nas escolas, visando universalizar o acesso, ou seja, a inclusão de todos, incondicionalmente, nas turmas escolares e democratizar a educação, sugerimos o que, felizmente, já está ocorrendo em muitas redes de ensino, verdadeiras vitrines que expõem o sucesso da inclusão.
A primeira sugestão para que se caminhe para uma educação de qualidade é estimular as escolas para que elaborem com autonomia e de forma participativa o seu Projeto Político Pedagógico, diagnosticando a demanda, ou seja, verificando quantos são os alunos, onde estão e porque alguns estão fora da escola.
Sem que a escola conheça os seus alunos e os que estão à margem dela, não será possível elaborar um currículo escolar que reflita o meio social e cultural em que se insere. A integração entre as áreas do conhecimento e a concepção transversal das novas propostas de organização curricular consideram as disciplinas acadêmicas como meios e não fins em si mesmas e partem do respeito à realidade do aluno, de suas experiências de vida cotidiana, para chegar à sistematização do saber.
Como essa experiência varia entre os alunos, mesmo sendo membros de uma mesma comunidade, a implantação dos ciclos de formação é uma solução justa, embora ainda muito incompreendida pelos professores e pais, por ser uma novidade e por estar sendo ainda pouco difundida e aplicada pelas redes de ensino. De fato, se dermos mais tempo para que os alunos aprendam, eliminando a seriação, a reprovação, nas passagens de um ano para outro, estaremos adequando o processo de aprendizagem ao ritmo e condições de desenvolvimento dos aprendizes – um dos princípios das escolas de qualidade para todos
Por outro lado, a inclusão não implica em que se desenvolva um ensino individualizado para os alunos que apresentam déficits intelectuais, problemas de aprendizagem e outros, relacionados ao desempenho escolar. Na visão inclusiva, não se segregam os atendimentos, seja dentro ou fora das salas de aula e, portanto, nenhum aluno é encaminhado a salas de reforço ou aprende a partir de currículos adaptados. O professor não predetermina a extensão e a profundidade dos conteúdos a serem construídos pelos alunos, nem facilita as atividades para alguns, porque de antemão já prevê as dificuldades que poderá encontrar para realizá-las. Porque é o aluno que se adapta ao novo conhecimento e só ele é capaz de regular o seu processo de construção intelectual.
A avaliação constitui outro entrave à implementação da inclusão. É urgente suprimir o caráter classificatório da avaliação escolar, através de notas, provas, pela visão diagnóstica desse processo, que deverá ser contínuo e qualitativo, visando depurar o ensino e torná-lo cada vez mais adequado e eficiente à aprendizagem de todos os alunos. Essa medida já diminuiria substancialmente o número de alunos que são indevidamente avaliados e categorizados como deficientes nas escolas regulares.
A aprendizagem como o centro das atividades escolares e o sucesso dos alunos como a meta da escola, independentemente do nível de desempenho a que cada um seja capaz, de chegar são condições de base para que se caminhe na direção de escolas acolhedoras. O sentido desse acolhimento não é o da aceitação passiva das possibilidades de cada um, mas o de serem receptivas a todas as crianças, pois as escolas existem para formar as novas gerações, e não apenas alguns de seus futuros membros, os mais privilegiados.
A inclusão não prevê a utilização de métodos e técnicas de ensino específicas para esta ou aquela deficiência. Os alunos aprendem até o limite em que conseguem chegar, se o ensino for de qualidade, isto é, se o professor considera o nível de possibilidades de desenvolvimento de cada um e explora essas possibilidades, por meio de atividades abertas, nas quais cada aluno se enquadra por si mesmo, na medida de seus interesses e necessidades, seja para construir uma ideia, ou resolver um problema, realizar uma tarefa. Eis aí um grande desafio a ser enfrentado pelas escolas regulares tradicionais, cujo paradigma é condutista e baseado na transmissão dos conhecimentos.
Aula 07
Planejamento II

O Projeto Político Pedagógico da escola na perspectiva de uma educação para a cidadania

(GADOTTI, 2009)

Estamos hoje discutindo esse tema porque a questão do projeto da escola é problemática, isto é, representa um desafio para todos os educadores. Se há algumas décadas a escola se questionava apenas sobre seus métodos, hoje ela se questionava sobre seus fins.
Até muito recentemente a questão da escola limitava-se a uma escolha entre ser tradicional e ser moderna. Essa tipologia não desapareceu, mas não responde a todas as questões atuais da escola. Muito menos à questão do seu projeto. A crise paradigmática também atinge a escola e ela se pergunta sobre si mesma, sobre seu papel como instituição numa sociedade pós-moderna e pós-industrial, caracterizada pela globalização da economia e das comunicações, pelo pluralismo político, pela emergência do poder local.
Nessa sociedade cresce a reivindicação pela autonomia contra toda forma de uniformização e o desejo de afirmação da singularidade de cada região, de cada língua etc. A multiculturalidade é a marca mais significativa do nosso tempo. É nesse contexto que podemos nos colocar questões como: o que é projeto? o que é Projeto Político Pedagógico da escola?
Frequentemente se confunde projeto com plano. Certamente o plano diretor da escola – como conjunto de objetivos, metas e procedimentos – faz parte do seu projeto, mas não é todo o seu projeto. Isso não significa que objetivos, metas e procedimentos não sejam necessários. Mas eles são insuficientes pois, em geral, o plano fica no campo do instituído ou melhor, no cumprimento mais eficaz do instituído, como defende hoje todo esse discurso oficial em torno da “qualidade”, e em, particular da “qualidade total”. Um projeto necessita sempre rever o instituído para, a partir dele, instituir outra coisa. Tornar-se instituínte.
Um Projeto Político Pedagógico não nega o instituído da escola que é a sua história, que é o conjunto dos seus currículos, dos seus métodos, o conjunto dos seus atores internos e externos e o seu modo de vida.
Um projeto sempre confronta esse instituído com o instituinte. Por exemplo, hoje a escola pública burocrática se confronta com as novas exigências da cidadania e busca de nova identidade de cada escola, pautas de uma sociedade cada vez mais pluralista. Não se constrói um projeto sem uma direção política, um norte, um rumo. Por isso, todo projeto pedagógico da escola é também político. O projeto pedagógico da escola é, por isso mesmo, sempre um processo inconcluso, uma etapa em direção a uma finalidade que permanece como horizonte da escola.
De quem é a responsabilidade da constituição do projeto da escola?
O projeto da escola não é responsabilidade apenas de sua direção. Ao contrário, numa gestão democrática, a direção é escolhida a partir do reconhecimento da competência e da liderança de alguém capaz de executar um projeto coletivo. A escola, nesse caso, escolhe primeiro um projeto e depois essa pessoa que pode executá-lo. Assim realizada, a eleição de um diretor, de uma diretora, possibilita a escolha de um Projeto Político Pedagógico para a escola. Ao se eleger um diretor para a escola o que se está elegendo é um projeto para a escola. Na escolha do diretor ou da diretora percebesse já o quanto o seu projeto é político.
Como vimos, o projeto pedagógico da escola está hoje inserido num cenário marcado pela diversidade. Cada escola é resultado de um processo de desenvolvimento de suas próprias contradições. Não existem duas escolas iguais. Diante disso, desaparece aquela arrogante pretensão de saber de antemão quais serão os resultados do projeto. A arrogância do dono da verdade dá lugar à criatividade e ao diálogo. A pluralidade de projetos pedagógicos faz parte da história da educação da nossa época.
Por isso, não deve existir um padrão único que oriente a escolha do projeto de nossas escolas. Não se entende, portanto, uma escola sem autonomia, autonomia para estabelecer o seu projeto e autonomia para executá-lo e avaliá-lo. A autonomia e a gestão democrática da escola fazem parte da própria natureza do ato pedagógico. A gestão democrática da escola é, portanto, uma exigência do seu Projeto Político Pedagógico.
Ela exige, em primeiro lugar, uma mudança de mentalidade de todos os membros da comunidade escolar. Mudança que implica deixar de lado o velho preconceito de que a escola pública é apenas um aparelho burocrático do Estado e não uma conquista da comunidade. A gestão democrática da escola implica que a comunidade, os usuários da escola, sejam os seus dirigentes e gestores, e não apenas os seus fiscalizadores ou meros receptores dos serviços educacionais. Na gestão democrática, pais, alunos, professores e funcionários assumem sua parte de responsabilidade pelo projeto da escola.
Há pelo menos duas razões que justificam a implantação de um processo de gestão democrática na escola pública:
1.ª – porque a escola deve formar para a cidadania e, para isso, ela deve dar o exemplo. A gestão democrática da escola é um passo importante no aprendizado da democracia. A escola não tem um fim em si mesma. Ela está a serviço da comunidade. Nisso, a gestão democrática da escola está prestando um serviço também à comunidade que a mantém;
2.ª – porque a gestão democrática pode melhorar o que é específico da escola, isto é, o seu ensino. A participação na gestão da escola proporcionará um melhor conhecimento do funcionamento da escola e de todos os seus atores; propiciará um contato permanente entre professores e alunos, o que leva ao conhecimento mútuo e, em consequência, aproximará também as necessidades dos alunos dos conteúdos ensinados pelos professores.
O aluno aprende apenas quando ele se torna sujeito da sua aprendizagem.
E para ele tornar-se sujeito da sua aprendizagem ele precisa participar das decisões que dizem respeito ao projeto da escola que faz parte também do projeto de sua vida. Passamos muito tempo na escola, para sermos meros clientes dela. Não há educação e aprendizagem sem sujeito da educação e da aprendizagem. A participação pertence à própria natureza do ato pedagógico.
A autonomia e a participação – pressupostos do Projeto Político Pedagógico da escola – não se limitam à mera declaração de princípios consignados em algum documento. Sua presença precisa ser sentida no conselho de escola ou colegiado, mas também na escolha do livro didático, no planejamento do ensino, na organização de eventos culturais, de atividades cívicas, esportivas, recreativas. Não basta apenas assistir reuniões. A gestão democrática deve estar impregnada por uma certa atmosfera que se respira na escola, na circulação das informações, na divisão do trabalho, no estabelecimento do calendário escolar, na distribuição das aulas, no processo de elaboração ou de criação de novos cursos ou de novas disciplinas, na formação de grupos de trabalho, na capacitação dos recursos humanos etc. A gestão democrática é, portanto, atitude e método. A atitude democrática é necessária, mas não é suficiente. Precisamos de métodos democráticos de efetivo exercício da democracia. Ela também é um aprendizado, demanda tempo, atenção e trabalho. Existem, certamente, algumas limitações e obstáculos à instauração de um processo democrático como parte do Projeto Político Pedagógico da escola.
Aula 08
Plano de Aula e Pedagogia de Projetos

Pedagogia de projetos e direitos humanos: caminhos para uma educação em valores
(ARAÚJO, 2008)
Na perspectiva de articulação entre transversalidade e interdisciplinaridade que adotamos em nosso trabalho, as ligações entre os diferentes conhecimentos não ocorrem por meio de cruzamentos pontuais entre as temáticas abordadas, pois assim manter-se-ia a fragmentação dos conhecimentos. A novidade está em buscar a organização curricular na estratégia pedagógica dos projetos, assumindo que o avanço na compreensão da natureza, da cultura e da vida humana está nas ligações que podemos estabelecer entre os mais diversos tipos de conhecimento: científicos; populares; disciplinares; não disciplinares; cotidianos; acadêmicos; físicos; sociais etc. Ou seja, o “segredo” está nas relações, nos infinitos caminhos que permitem ligar os conhecimentos uns aos outros.
Na escola, isso se traduz em projetos que tenham um ponto de partida, mas cujo ponto de chegada é incerto, indeterminado, pois está aberto aos eventos aleatórios que perpassam o processo de seu desenvolvimento, ou seja, em projetos que reconheçam o papel de autoria de alunos e alunas, mas que reforcem a importância da intencionalidade do trabalho docente para a instrução e a formação ética. Esse processo deve ocorrer em uma perspectiva que reconheça a importância das especializações dos professores de Matemática, de Língua Portuguesa, de Ciências etc., e que estes assumam o papel dessas áreas disciplinares e suas infinitas interligações possíveis como “meio” para o objetivo maior de construção da cidadania.
Daí a importância de buscar novas metáforas iluminadoras para auxiliar na compreensão das relações existentes entre o ser humano e o mundo natural e cultural. A metáfora que procura reproduzir a organização das redes neurais e compreender os conhecimentos como uma rede de significados é um bom caminho nesse sentido.
Embora já estivesse empregando a metáfora da “rede” há um bom tempo nos projetos pedagógicos e curriculares que desenvolvo, encontrei no trabalho de Machado (1995) e em suas citações sobre as ideias de Michel Serres e Pierre Lévy a fundamentação teórica que me ajudou a compreender e transformar as ações práticas que vinha desenvolvendo.
Nesse sentido, a ideia de rede é entendida como metáfora para a representação do conhecimento e possui como material constitutivo de sua teia de relações, as significações que Machado (1995, p.138), de forma resumida, afirma: compreender é apreender o significado; apreender o significado de um objeto ou de um acontecimento é vê-lo em suas relações com outros objetos ou acontecimentos; os significados constituem, pois, feixes de relações; as relações entretecem-se, articulam-se em teias, em redes, construídas social e individualmente, e em permanente estado de atualização; em ambos os níveis – individual e social – a ideia de conhecer assemelha- se à de enredar.

Uma outra característica da rede é que ela contrapõe-se diretamente à ideia de cadeia, de encadeamento lógico, de ordenação necessária, de linearidade na construção do conhecimento, com as determinações pedagógicas relacionadas com os pré-requisitos, as seriações, os planejamentos e as avaliações. (MACHADO, 1995, p.140)

Complementando os pressupostos que nos ajudam a compreender a metáfora da rede, Machado recorre à metáfora do hipertexto, proposta por Pierre Levy (1993, p. 25), quando afirma que o hipertexto é talvez uma metáfora válida para todas as esferas da realidade em que significações estejam em jogo. Aponta, então, os seis princípios que Levy chama de conformadores do hipertexto e que podem ser transportados para caracterizar a metáfora do conhecimento como rede.
Princípio de metamorfose – a rede está em constante construção e transformação e, a cada instante, podem se alterar os feixes que compõem os nós, atualizando o desenho da rede.
Princípio de heterogeneidade – os nós e as conexões de uma rede são heterogêneos, significando que existe uma multiplicidade de possibilidades de interligação entre eles. Apenas como exemplo, nessas ligações, que podem ser lógicas, afetivas, analógicas, sensoriais, multimodais, multimídias, podem ser utilizados sons, imagens, palavras e muitas outras linguagens.

Princípio de multiplicidade e de encaixe das escalas – a rede organiza-se de modo “fractal”, ou seja, qualquer nó ou conexão, quando analisado, pode revelar-se como sendo composto por toda uma rede, e assim por diante, indefinidamente (LEVY, 1993, p. 25).

Princípio de exterioridade – a rede é permanentemente aberta ao exterior, à adição de novos elementos, a conexões com outras redes.
Princípio de topologia – na rede, o curso dos acontecimentos é uma questão de topologia, de caminhos.
Princípio de mobilidade dos centros – a rede não tem centro, ou pode ter vários centros que trazem ao redor de si pequenas ramificações.
O desafio passou a ser traduzir todos esses princípios em uma estratégia pedagógica de projeto que permitisse trabalhar a transversalidade na educação, articulada com a interdisciplinaridade. Trabalhando nessa perspectiva, a Escola Comunitária de Campinas, sob minha supervisão, passou a orientar seu currículo a partir da estratégia de projetos, utilizando a metáfora das redes neurais.
Mais importante ainda, articulado com essa perspectiva, trouxe para o cotidiano das salas de aula a preocupação com a educação em valores, com a busca de solução para os problemas sociais e a tentativa de ligação dos conteúdos científicos e culturais com a vida das pessoas, definindo que os temas dos projetos deveriam estar relacionados com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Aula 09
Currículo: implicações didático-metodológicas

“Endireitar” a educação: as escolas
e a nova aliança conservadora
(APPLE, 2002)
[...]
Para estes autores, é romântico assumir que as políticas sociais e educacionais podem, em última análise, conduzir a resultados cada vez mais iguais dado que as diferenças na inteligência e no sucesso são geneticamente determinadas.
A tarefa mais acertada que os planificadores das políticas educativas poderiam fazer seria aceitar este determinismo genético, planificando numa sociedade que reconhece estas diferenças biológicas e não providenciando “falsas esperanças” aos pobres e aos menos inteligentes, que na maior parte dos casos são negros.
Obviamente, este livro reforça estereótipos rácicos que contribuíram parcialmente durante um longo período de tempo para as políticas sociais e educacionais dos Estados Unidos da América do Norte (OMI; WINANT, 1994).
Em vez de se ver a raça tal e qual como é – como uma categoria completamente social que é mobilizada e usada em formas diversas por grupos diferentes em tempos específicos (OMI; WINANT, 1994) – posições como estas, defendidas por Herrnstein & Murray, formam uma capa envernizada de legitimidade científica para os discursos das políticas que anteriormente caíram no descrédito intelectual (KINCHELOE; STEINBERG, 1996).
A mobilidade financeira dada a esta obra, pela qual é afirmado que os autores receberam largas quantias monetárias das fundações neoconservadoras para escreverem e publicarem o livro, revela claramente não só o substrato racial em parte inerente à agenda neoconservadora como também o poder dos grupos conservadores de virem a público expor as suas ideias.
As consequências destas posições não se encontram nas políticas educativas, mas na intercepção dessas políticas com as políticas econômicas e sociais mais vastas onde realmente têm sido influentes. Aqui também podemos discernir esta questão: as contestações de que o que os pobres não têm falta de dinheiro, mas de uma herança biológica “apropriada” e de uma decidida falta de valores relacionados com a disciplina, diligência no trabalho e moralidade (KLATCH, 1987).
Exemplos importantes são os programas como “Learnfare” e “Workfare”, onde os pais perdem uma parcela dos seus benefícios sociais se os seus filhos faltarem um número significativo de dias à escola ou não serão pagos benefícios nenhuns se uma pessoa não aceitar uma remuneração baixa, não obstante o rebaixamento social em causa ou mesmo se a assistência social não é providenciada pelo estado. Estas políticas reinstalam as anteriores políticas de “workhouses” que foram tão populares – e tão prejudiciais – nos Estados Unidos da América do Norte, na Inglaterra e noutros países (APPLE, 1996).
Despendi muito do meu tempo nesta seção, documentando o poder crescente das posições neoconservadoras nas políticas sociais e educacionais nos Estados Unidos da América do Norte. Forjaram uma coligação criativa com os neoliberais, uma coligação que – em concertação com outros grupos – está efetivamente a transformar a visão na qual as políticas vêm a ser debatidas. Deste modo, mesmo tendo em conta o crescimento da influência das políticas neoliberais e neoconservadoras, teriam consideravelmente menos sucesso se não tivessem chamado a si o populismo autoritário e o fundamentalismo religioso, colocando-os debaixo do espectro da aliança conservadora. Iremos agora falar sobre este grupo.
Populismo autoritário
Talvez mais do que em qualquer outra nação industrializada não seja possível compreender globalmente as políticas educativas nos Estados Unidos da América do Norte sem se prestar a devida atenção à “direita” cristã. É excepcionalmente poderosa e influente para além dos seus próprios números, nos debates sobre a política pública nos media, na educação, na assistência social, nas políticas sexuais e corporais, na religião etc.
A sua influência advém de um grande compromisso no seio dos próprios activistas, de uma larga base financeira que possuem, das suas posições retóricas populistas e da agressividade com que perseguem os seus objetivos.
Os populistas autoritários da “nova direita” baseiam as suas posições na educação, em particular, e na política social, em geral, através de visões particulares fundamentadas na autoridade bíblica, tais como “a moral cristã”, o devido papel dos gêneros masculino e feminino, e da família. A “nova direita” entende o gênero e a família como uma unidade divina e orgânica que resolve “o egoísmo masculino” e o “altruísmo feminino”. Tal como Hunter (1988, pág. 15) descreve:

Uma vez que o gênero é divino e natural... não há espaço para um conflito político legítimo. No seio da família, homem e mulher – estabilizados e dinâmicos – encontram-se harmoniosamente fundidos quando não são perturbados pelo modernismo, liberalismo, feminismo e humanismo que ameaça diretamente a masculinidade e feminilidade e tem os seus efeitos nas crianças e na juventude [...] “mulher real”, isto é, mulheres que, entendendo-se como esposas e mães, não irão colocar em risco a santidade do seu lar através do seu feminismo. Quando homens ou mulheres transformam os seus papéis de gênero colidem com Deus e com a natureza; quando os liberais feministas e os humanistas seculares impedem-nos de cumprirem essas regras, eles menosprezam os apoios naturais e divinos nos quais repousa a sociedade.

Na mente destes grupos, o ensino público é em si um espaço de imenso perigo. Nas palavras do ativista conservador Tim LaHaye, “a educação pública moderna é a força mais perigosa na vida da criança: de modo religioso, sexual, econômico, patriótico e físico (HUNTER, 1988, p. 57). Isto relaciona-se com o sentido de perda da “nova direita” em relação às escolas e à família.
Aula 10
Estudos culturais, currículo e educação

A poética e a política do currículo
como representação
(SILVA, 1998)
Como local de conhecimento, o currículo é a expressão de nossas concepções do que constitui conhecimento. Em geral, a noção de conhecimento que aí se expressa é fundamentalmente realista. Existe um mundo objetivo de fatos, coisas, habilidades ou, no máximo, de significados fixos, que devem ser transmitidos.
O currículo não é, entretanto, como supõe a concepção realista, um local de transmissão de conhecimento concebido como mera revelação ou transcrição do “real”. O currículo, tal como a linguagem, não é um meio transparente, que se limita a servir de passagem para um “real” que o conhecimento torna presente. O currículo é também representação: um local em que circulam signos produzidos em outros locais, mas também um local de produção de signos. Conceber o currículo como representação significa vê-lo como superfície de inscrição, como suporte material do conhecimento em sua forma de significante. Na concepção do currículo como representação, o conhecimento não é a transcrição do “real”: a transcrição é que é real.
Nessa concepção realista e objetivista do currículo não há, evidentemente, lugar para considerar relações de poder. Na suposta correspondência entre, de um lado, o mundo dos fatos e dos significados fixos e, de outro, o currículo e o conhecimento, não existe lugar para nenhuma mediação, muito menos para uma mediação realizada através de relações de poder: essa correspondência é simplesmente um fato da natureza e da vida. A concepção realista de conhecimento e currículo é também uma concepção que suprime qualquer noção de política. O mundo estático e morto das coisas e dos significados fixos é um mundo sem disputa, sem contestação. Ele está simplesmente ali: é um dado.
A superfície de representação que é o currículo é, pois, uma área altamente contestada. Representar significa, em última análise, definir o que conta como real, o que conta como conhecimento. É esse poder de definição que está em jogo no currículo concebido como representação. A representação, como prática de linguagem, consiste precisamente na tentativa de domesticar o processo selvagem, rebelde, da significação. A representação é uma tentativa – sempre frustrada – de fixação, de fechamento, do processo de significação. Fixar, fechar: é nisso, precisamente, que consiste o jogo do poder. Como terreno onde se joga o jogo da significação e da representação, o currículo é, assim, objeto de uma disputa vital.
Estaremos nos aproximando de uma concepção do currículo como representação, como local – disputado – de construção de objetos de conhecimento, se começarmos a vê-lo, primeiramente, como texto, como discurso, como signo, como prática de significação. Nessa concepção alternativa, o conhecimento, tal como o significado, não pode ser separado de sua existência como signo, de sua existência material como objeto linguístico. O signo não reflete, aqui, simplesmente, transparentemente, univocamente, de forma não problemática, significados cuja existência pode ser traçada a um mundo extralinguístico. Na perspectiva que vê o conhecimento e o currículo como representação, o signo está envolvido de forma ativa, cúmplice, na produção daquilo que conta como conhecimento e como currículo. Nesse processo de produção, o signo é não apenas objeto de disputa: ele é, mais do que isso, local de luta e de conflito. O signo é, aqui, um campo de forças cujos vetores são relações de poder. O currículo seria, assim, uma luta em torno do signo, da representação.
Conceber o currículo como texto, entretanto, não significa vê-lo como texto simplesmente legível, na acepção de Barthes. Isto é, o conhecimento corporificado no currículo não deveria estar ali como um texto apenas para ser objeto de um ato de interpretação que se limitasse a buscar sua correspondência com um conjunto de significados cuja existência pudesse ser traçada a uma autoria, a uma intenção, a uma realidade anterior. Nessa concepção, frente a um texto só cabe a pergunta: qual é seu referente, a que significado (prévio) ele se refere? Conceber o currículo como texto significa vê-lo, antes, como texto escrevível, outra vez, no sentido de Barthes. Aqui, o texto se abre integralmente para sua produtividade. A interação com o texto não se limita, nessa perspectiva, a detectar a presença de um significado ao qual o texto se refere univocamente. O texto aparece, aqui, na sua existência como escrita, no sentido que Derrida lhe atribuiu. No texto como escrita o significado não existe num domínio separado, autônomo, daquele do significante: o significado só existe através do significante, mas não como presença e, sim, como traço que o liga, numa cadeia de diferenças, a outros significados.
Nessa concepção, o texto é a tentativa de fixação de um significado que, não obstante, sempre nos escapa. É essa indeterminação, essa instabilidade, que confere ao significante, ao texto, sua produtividade: ele se torna, assim, plenamente escrevível.
Conceber o currículo como representação significa, pois, destacar o trabalho de sua produção, significa expô-lo como o artefato que é. Ver o currículo como representação implica expor e questionar os códigos, as convenções, a estilística, os artifícios através dos quais ele é produzido: implica tornar visíveis as marcas de sua arquitetura. Há lugar aqui para uma poética do currículo.
Da perspectiva de uma poética do currículo, ele não é visto como a pura expressão ou registro de uma realidade ou de um significado preexistente: ele é a criação linguística, discursiva, de uma realidade própria. Uma poética do currículo como representação chama a atenção para a medida na qual o conhecimento é dependente de códigos, de convenções: de recursos retóricos.
Esses recursos retóricos estruturam a representação que constitui o currículo.
Sua eficácia emotiva, seu efeito de realidade, não podem ser desvinculados dos elementos estéticos que, precisamente, fazem com que ele seja, antes de tudo, representação. Nessa perspectiva, o foco não é o significado, mas o significante. Numa poética do currículo, o significante não aparece simplesmente como o meio transparente através do qual o significado se expressa: o significante é que é a matéria-prima da representação.
Mas conceber o currículo como representação significa também enfatizar que os recursos retóricos que dirigem sua poética não têm objetivos ou efeitos meramente ornamentais ou estéticos: sua utilização está estreitamente ligada a relações de poder. A eficácia emotiva que é proporcionada pelos recursos poéticos mobilizados na sua construção não se esgota na estética de sua construção. A representação é sempre uma representação autorizada: sua força e sentido dependem também dessa autoridade que está necessariamente ligada ao poder. O processo de significação é também um jogo de imposição de significados, um jogo de poder. O texto que constitui o currículo não é simplesmente um texto: é um texto de poder. Além de uma poética é necessário, pois, que tenhamos também uma política do currículo. Conceber o currículo como representação implica vê-lo, simultaneamente, inseparavelmente, como poética e como política. Seus efeitos de poder são inteiramente dependentes de seus efeitos estéticos; inversamente: seus efeitos estéticos só fazem sentido no interior de uma economia afetiva movimentada pela obtenção de efeitos de poder.
Embora a noção de currículo como representação tenha uma implicação ampla e abrangente, é na análise do papel do currículo na produção da identidade e da diferença social que ela se mostra particularmente útil. Como sabemos, há uma estreita ligação entre o processo de produção lingüística da identidade e da diferença que caracteriza a representação e a produção cultural e social da identidade e da diferença. A produção da identidade e da diferença se dá, em grande parte, na e através da representação. Como representação, o currículo está diretamente envolvido nesse processo. É aqui, nessa intersecção entre representação e identidade, que o currículo adquire sua importância política. A representação, em conexão com o poder, está centralmente envolvida naquilo que nos tornamos. Não há identidade nem alteridade fora da representação. O currículo é, ali, naquele exato ponto de intersecção entre poder e representação, um local de produção da identidade e da alteridade. É precisamente, aqui, nesse ponto, que o currículo, tal como o conhecimento, se torna um terreno de luta em torno da representação.
Aula 11
Projetos de trabalho na Educação Infantil

Infância, escola e mídia:
a(s) cultura(s) infantil(is) em discussão
(FIGUEIREDO, 2007)

[...]
É sobre a televisão que Postman debruça suas acusações. A televisão, apartir da década de 50, iniciou uma revolução na forma como a informação passou a ser divulgada mundialmente. A imagem sobrepõe-se então ao discurso e invade os espaços habitados tanto por crianças quanto por jovens, adultos e idosos. Torna-se o meio de comunicação com maior difusão mundial e, de certa forma, monopoliza o acesso à informação, não por ser o único veículo difusor de notícias, mas por ser o de maior acesso. Segundo o autor, a televisão cria esse monopólio por não requisitar dos seus telespectadores nenhuma habilidade cognitiva mais avançada: “as pessoas vêem televisão.
Não a lêem. Não a escutam muito. Vêem. Isso acontece com adultos e crianças, intelectuais e trabalhadores, tolos e sábios” (id., p. 92).
O grande questionamento, para Postman, pode ser encontrado na relação entre a criança e a televisão, pois essa se constitui como um veículo de comunicação e entretenimento que não distingue entre adultos e crianças.
Não há formas de ocorrer essa separação. Não existem restrições para se assistir televisão, todos conseguem entender as suas imagens, pois ela não exige nenhuma forma de racionalidade elaborada para ser compreendida.
Apenas exige as nossas emoções, para que possamos seguir sua lógica e nos mantermos de acordo com suas premissas, que na maioria das situações é ditada pela lógica do consumo.
No entanto, o ponto nevrálgico, para ele, da grande difusão da televisão na sociedade contemporânea é a sua capacidade de destituir a linha divisória entre idade adulta e a infância. A televisão, por não possuir restrições – e quando as simboliza faz no sentido de provocar maiores olhares – acaba escancarando todos os segredos do mundo adulto, que desde o século XVI foram preservados das crianças. Cenas de violência, de sexo, mentira, traição, corrupção, pedofilia, homossexualismo, enfim, questões do mundo adulto e privado estão, a partir da televisão, presentes no cotidiano de crianças e adolescentes do mundo inteiro. Não existem mais segredos a serem revelados: as crianças já os conhecem e passam a discuti-los entre si e com adultos. A noção de vergonha, antes um marco para a distinção entre adultos e crianças, agora se destitui, e passamos a viver com crianças extremamente informadas e conhecedoras de todas as situações existentes na sociedade.
Nesse sentido é que Postman acredita ser a televisão a grande responsável pelo desaparecimento da infância. Através da televisão, a criança percebe e aprende os acontecimentos do mundo, sem, muitas vezes, a mediação de um adulto responsável ou por uma leitura crítica dessas mídias pelo professor. Entretanto, entendemos a necessidade de travarmos, nesse momento, alguns contrapontos, necessários a um entendimento mais complexo em relação a constituição da infância na sociedade contemporânea.
O seu trabalho, bastante enfático em suas afirmações sobre o provável desaparecimento das ideias de infância acaba limitando teoricamente as discussões necessárias para podermos compreender as atuais condições da infância. Entendemos que, ao delimitarmos uma provável “morte” da infância, estamos, de certo modo, omitindo-nos de problematizarmos situações que “escapam” das suas considerações. Com isso, para estabelecermos esse contraponto, optamos pela utilização de um trabalho bastante pertinente às questões contemporâneas da infância: a obra de Leni Vieira Dornelles, Infâncias que nos Escapam: da criança de rua à criança cyber (2005). A autora, que procura apontar de que forma a modernidade construiu mecanismos de subjetivação para o “governo” dos infantis, dedica-se ainda a compreender de que forma podemos compreender as infâncias que vêm a “escapar” desse modelo de infância idealizado pela modernidade, ou seja, compreender as diferentes culturas infantis, ou, como a autora mesmo distingue, as infâncias ninjas, referindo-se àquelas infâncias a margem das tecnologias, da família, do lar, que se encontram em situação de abandono ou ainda as infâncias cybers, infâncias essas compostas por crianças altamente globalizadas, com acesso a maioria das tecnologias de informação, conhecimento e entretenimento, e que assustam a maioria dos pais e educadores por, em muitos momentos, não conseguir mais controlá-las.
A modernidade, a partir de uma série de discursos (médico-higienistas, pedagógicos, escolares, familiares, científicos), criou tecnologias de controle para que fosse possível a vigilância desses sujeitos, tornando-os mais fáceis de treinamento e disciplinamento. É sobre esse ponto que Dornelles (2005), se debruça na primeira parte da obra Infâncias que nos Escapam. Busca apresentar de que forma a modernidade acaba criando um modelo de infância.
Segundo Bujes (2001), o modelo de infância moderno pode ser entendido como resultado dessa série de produção de discursos, que denotam ainda as relações de poder entre adultos e crianças. Esses discursos, esses significados atribuídos à infância resultam, para Bujes (id., p. 26), o resultado de um processo de construção social, dependem de um conjunto de possibilidades que se conjugam em determinado momento da história, são organizados socialmente e sustentados por discursos nem sempre homogêneos e em perene transformação. Tais significados não resultam, como querem alguns, de um processo de evolução, nem estão acima e à parte das divisões sociais, sexuais, raciais, étnicas,... São modelados no interior de relações de poder e representam interesses manifestos da Igreja, do Estado, da Sociedade Civil...Implicam em intervenções da filantropia, da religião, da Medicina, da Psicologia, do Serviço Social, das famílias, da Pedagogia, da mídia... Contudo, esses significados não são estáveis nem únicos e as linguagens que usamos, ao mudar constantemente, são indicativas da fluidez e da mutabilidade a que estão sujeitos.
Em meio às análises desses vários discursos produzidos pela modernidade visando o governamento dos sujeitos infantis, criando diversas tecnologias de controle e vigilância dos infantis, principalmente nos espaços das instituições escolares (a rotinização dos tempos e espaços das crianças da
Educação Infantil, por exemplo), é que constituem, para Dornelles (2005), o discurso moderno de infância.
Entretanto, o que podemos perceber atualmente é que as nossas crianças, de formas muito diversas, acabam por não mais se enquadrar dentro desses modelos, tanto nas escolas quanto em suas casas, nas suas brincadeiras, nas suas formas de se vestir, de falar, de consumir, de existir. É nesse ponto que Postman acredita que a infância está desaparecendo, morrendo, pois não se enquadra mais dentro dos parâmetros modernos institucionalizados para ela.

Aula 12
Projetos de trabalho para Séries Iniciais

Os circuitos dos jovens urbanos
(MAGNANI, 2005)

Recentemente, o antropólogo espanhol Carles Feixa referiu-se a ela na introdução ao número especial da Revista de Estudios de Juventud (n. 64, 2004), que trazia textos majoritariamente de autoria de pesquisadores da península ibérica, fazendo um contraponto com outra expressão, “culturas juvenis”, para demarcar linhas de interpretação diferentes. Ao mesmo tempo em que se registra a presença maciça na mídia da temática jovem, desde os anos de 1960, nas modalidades punks, mods, skinheads, heavies, rockers, grunges, nuevaoleros etc., não teria havido a devida correspondência nas pesquisas acadêmicas, as quais teriam ficado restritas a aspectos estruturais – escola, trabalho, família – ou a temas clássicos como o associacionismo, a participação, as atitudes políticas. Por outro lado, as metodologias quantitativas teriam relegado a um segundo plano as abordagens de corte etnográico.
Ainda segundo Feixa, nesse período houve estudos empíricos e alguns até teóricos, que no entanto não tiveram a devida difusão. Nos últimos anos, essa situação tendeu a mudar e o tema das “tribos urbanas” começou a despertar interesse no meio acadêmico de forma mais sistemática. A ideia do número especial daquela revista foi retomar a questão e propor uma nova perspectiva para tratar o assunto, que está resumida no próprio título: “Das tribos urbanas às culturas juvenis”:
O primeiro termo (tribos urbanas) é o mais popular e difundido, ainda que esteja fortemente marcado por sua origem na mídia e por seus conteúdos estigmatizantes. O segundo termo (culturas juvenis) é o mais utilizado na literatura acadêmica internacional (vinculada normalmente aos estudos culturais). Essa mudança terminológica implica também uma mudança na forma de encarar o problema, que transfere a ênfase da marginalidade para a identidade, das aparências para as estratégias, do espetacular para a vida cotidiana, da delinquência para o ócio, das imagens para os atores. (FEIXA, 2004, p. 6; trad. minha)
O autor prossegue dizendo que o termo “culturas juvenis” aponta mais para as formas em que as experiências juvenis se expressam de maneira coletiva, mediante estilos de vida distintivos, tendo como referência principalmente o tempo livre. Esses “estilos distintivos”, identificados por meio do consumo de determinados produtos da cultura de massa, como roupas, música, adereços, formas de lazer etc., remetem à ideia das “subculturas”, tão ao gosto da tradição inaugurada pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, referência obrigatória dos atuais cultural studies. Por outro lado, ainda nessa tradição, as experiências no interior das subculturas eram vistas como rituais de resistência à dominação de uma cultura hegemônica; daí o caráter “chocante” e desafiador da presença, do visual e da atuação dos skinheads, por exemplo, manifestação tida como paradigmática de uma subcultura juvenil típica (HALL; JEFFERSON, 1976).
Com o objetivo, porém, de oferecer uma alternativa a esses enfoques e assim poder dialogar com eles na forma de contraposição e/ou complementaridade, proponho outra denominação, “circuitos de jovens”, e outro ponto de partida para a abordagem do tema do comportamento dos jovens nos grandes centros urbanos. Em vez da ênfase na condição de “jovens”, que supostamente remete a diversidade de manifestações a um denominador comum, a ideia é privilegiar sua inserção na paisagem urbana por meio da etnografia dos espaços por onde circulam, onde estão seus pontos de encontro e ocasiões de conflito, e os parceiros com quem estabelecem relações de troca.
Mais concretamente, o que se busca com essa opção é um ponto de vista que permita articular dois elementos presentes nessa dinâmica: os comportamentos (recuperando os aspectos da mobilidade, dos modismos etc., enfatizados nos estudos sobre esse segmento) e os espaços, as instituições e os equipamentos urbanos que, ao contrário, apresentam um maior (e mais diferenciado) grau de permanência na paisagem – desde o “pedaço”, mais particularista, até a “mancha”, que supõe um acesso mais amplo e de maior visibilidade. O que se pretende com esse termo, por conseguinte, é chamar a atenção (1) para a sociabilidade, e não tanto para pautas de consumo e estilos de expressão ligados à questão geracional, tônica das “culturas juvenis”; e (2) para permanências e regularidades, em vez da fragmentação e do nomadismo, mais enfatizados na perspectiva das ditas “tribos urbanas”.
Essa proposta tem como base uma reflexão anterior, formulada em artigo da Revista Brasileira de Ciências Sociais (MAGNANI, 2002), sobre a necessidade de recortar e diferenciar uma “antropologia urbana” no interior da vaga e pouco operativa expressão “antropologia das sociedades complexas”. A ideia era levar em conta tanto os atores sociais com suas especificidades (determinações estruturais, símbolos, sinais de pertencimento, escolhas, valores etc.) como o espaço com o qual interagem – mas não na qualidade de mero cenário, e sim como produto da prática social acumulada desses agentes, e também como fator de determinação de suas práticas, constituindo, assim, a garantia (visível, pública) de sua inserção no espaço.

Aula 13
Projetos de trabalho para as séries Finais no Ensino Fundamental

Se estamos indo, é bom que saibamos para onde vamos
(LACERDA, 2002)
Por muitas vezes nos disseram o que deveríamos ser. No entanto, poucas vezes nos perguntaram quem somos. Em vários momentos nos disseram o que fazer, sem que buscassem compreender também o que fazíamos. Tradicionais, construtivistas e agora pesquisadoras, parece que a adjetivação nos persegue.
Somos professoras, misturas de tendências, pertencentes a um povo, também mistura, e que muito dificilmente encontra afinidades em categorias.
Afirmar que somos isto ou aquilo impede que sejamos um pouco de tudo, ou que sejamos e deixemos de ser quando quisermos “desdizendo aquilo tudo que dissemos antes”, como há tanto tempo canta Raul.
Não deveríamos considerar tanto os adjetivos. Muitas vezes eles hierarquizam, aprisionam, impedem investimentos que não se encontrem amarrados ao seu campo semântico. Nos fazem acreditar que esta prática é tradicional e aquela outra é construtivista quando, muitas vezes, trata-se tão-somente de uma questão de ponto de vista. Sendo pesquisadora, brevemente a professora poderá encontrar-se pisando em ovos, impossibilitada de errar.
Deixemos, pois, os adjetivos para lá. O importante é que possamos compreender o que estamos fazendo e encontrar o equilíbrio necessário quando for preciso fazer escolhas. Que possamos coletivamente encarar os desafios que a escola nos oferece a cada dia, acreditando em nós mesmas e afirmando, cada vez mais, nosso discernimento diante da teoria. Um pouco além de encontrar uma nomenclatura para usarmos como referência, é bom que consigamos compreender a nós mesmas.
O paradigma da professora-pesquisadora pode nos ajudar nesse sentido, com a vantagem de não se tratar de um modelo a ser seguido. Os modelos pressupõem métodos preestabelecidos, fórmulas prontas, resultados previsíveis.
O investimento em pesquisa jamais nos dirá antecipadamente onde iremos chegar, nem tampouco como e por onde deveremos ir.
A pesquisa pode nos ajudar a tornar visível para nós mesmas, onde, quando e por que nos ocultamos. Exercitando o olhar, vamos apurando outros sentidos, aprendendo a falar também com o silêncio para muito especialmente ouvir o outro. Porque dificuldade maior do que a de ouvir o outro, só mesmo a de ouvir a nós mesmas.
Olhando curiosamente para a escola, podemos continuamente descobrir escondidas, não se sabe onde, outras possibilidades que não aquela na qual acreditávamos. Junto com isso, nos aproximar um pouco mais das lógicas que nossas crianças utilizam e, assim, ajudá-las a aprender. Consolidando os argumentos que vamos construindo sobre a escola, podemos descobrir que podemos.
Sem esperar que os resultados de nossas investigações possam sempre melhorar a escola, vamos aprendendo que as pesquisas são capazes, ou não, de modificar nossas práticas ao considerar que o “critério [de validade da pesquisa seja] o vínculo com a prática, e não, necessariamente, a mudança” (ZEICHNER, 1998, p. 261).
[...]

Aula 14
Projetos para o Ensino Médio
Quando o sociólogo quer saber
o que é ser professor

(REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO, 2009)

Em entrevista concedida à Revista Brasileira de Educação, em setembro de 1996, durante breve estada no Brasil, o sociólogo François Dubet reflete sobre a sua experiência de um ano como professor de História e Geografia em um colégio da periferia de Bordeaux, França. Conhecido por suas pesquisas sobre a juventude marginalizada na França, François Dubet quis vivenciar, diretamente como professor, os dilemas da escola francesa contemporânea.
François Dubet é pesquisador do Centre d’Analyse et d’Intervention Sociologiques (CNRS – École des Hautes Études en Sciences Sociales), professor titular e chefe do departamento de Sociologia da Universidade de Bordeaux II e membro senior do Institute Universitaire de France. É autor de mais de uma dezena de livros, entre os quais: La galère: jeunes en survie. Paris: Fayard, 1987; Les lycéens. Paris: Seuil, 1991; Sociologie de l’experience. Paris: Seuil, 1994 (Edição portuguesa: Lisboa: Instituto Piaget, 1997) e A l’école. (com Danilo Martucelli) Paris: Seuil, 1966.

Por quê, enquanto pesquisador, você escolheu lecionar por um ano em um colégio?
Eu quis ensinar durante um ano por duas razões um pouco diferentes. A primeira é que nos meus encontros, coletivos ou individuais, com professores, eu tinha a impressão de que eles davam descrições exageradamente difíceis da relação pedagógica. Eles insistiam muito sobre as dificuldades da profissão, a impossibilidade de trabalhar, a queda de nível dos alunos etc. E eu me perguntava se não era um tipo de encenação um pouco dramática do seu trabalho. A segunda razão é que, durante uma intervenção sociológica com um grupo de professores, encontrei duas professoras com uma resistência muito grande ao tipo de análise que eu propunha. Elas deixaram o grupo. Uma delas escreveu uma carta em que me criticava particularmente por não ter lecionado, de ser um “intelectual”, de ter uma imagem abstrata dos problemas. Foi um pouco por desafio que eu quis dar aulas para ver do que se tratava.
Devo dizer que essa experiência não era nada central para mim, já que não era o coração do meu trabalho de pesquisa; nunca imaginei seriamente escrever um livro sobre a minha experiência de professor. Assumi uma classe de cinquième, 2.º ginasial (que começa após os cinco anos de escola elementar), com crianças de 13/14 anos, em um colégio popular, bastante difícil, em que o nível dos alunos é baixo, e dei aulas durante um ano. Portanto, da volta às aulas em setembro até o mês de junho, quatro horas por semana, ao lado de minhas atividades de acadêmico, de chefe de departamento, me esforcei para ser um professor razoável. Ensinei História e Geografia, já que são disciplinas que me interessavam e que não requeriam uma formação específica como o Inglês ou as matemáticas, pelo menos no nível escolar em que eu trabalhava.
Podemos dizer muitas coisas sobre essa experiência.
Logo, me dei conta de que a “observação participante” era um absurdo. Durante duas semanas, tentei ficar observando, isto é, ver a mim mesmo dando aula. Mas após duas semanas, estava completamente envolvido com o meu papel e eu não era de maneira alguma um sociólogo, embora tivesse me esforçado para manter um diário de umas 50 páginas, no qual redigi minhas impressões. Entretanto, não acredito que se possa fazer pesquisa se colocando no lugar dos atores; eu acho que é um sentimentalismo sociológico que não é sério ou que supõe muitas outras qualidades diferentes das minhas.
Contudo, eu fiz esse trabalho em boas condições, pois fui muito bem acolhido pela grande maioria dos professores que ficaram bastante sensibilizados pelo fato de eu ir dar aulas e tive realmente muito apoio, muita simpatia [...] Aliás, não é preciso esconder que o fato de ser um homem no meio de mulheres pode também ajudar. Era um clima bastante agradável.
A minha primeira surpresa, e que é fundamental, corresponde ao que os professores dizem nas suas entrevistas. Os alunos não estão “naturalmente” dispostos a fazer o papel de aluno. Dito de outra forma, para começar, a situação escolar é definida pelos alunos como uma situação, não de hostilidade, mas de resistência ao professor. Isso significa que eles não escutam e nem trabalham espontâneamente, eles se aborrecem ou fazem outra coisa. Lá, na primeira aula, os alunos me testaram, eles queriam saber o que eu valia.
Começaram então a conversar, a rir [...] Um aluno, um menino que estava no fundo da sala, fazia tanto barulho que eu pedi para ele vir se sentar na frente.
Ele se recusou. Fui buscá-lo, o levantei e o trouxe para frente. Ele gritava: “Ele vai quebrar meu ombro!” Bom, finalmente, depois de 10 minutos, houve um contato [...] fiquei muito contente que o menino tivesse 13 anos, pois se tivesse pego uma classe de troisième (3.º ginasial) e que o menino tivesse 1,80m e pesasse 75 quilos, eu estaria com problemas. Ou se eu fosse uma jovem professora de 22 anos, não sei como teria reagido.
A minha segunda surpresa: é preciso ocupar constantemente os alunos. Não são alunos capazes de fingir que estão ouvindo, sonhando com outra coisa e não fazer barulho. Se você não os ocupa com alguma coisa, eles falam. É extremamente cansativo dar a aula já que é necessário a toda hora dar tarefas, seduzir, ameaçar, falar [...] Por exemplo, quando a gente fala “peguem os seus cadernos”, são cinco minutos de bagunça porque eles vão deixar cair suas pastas, alguns terão esquecido seus cadernos, outros não terão lápis. Aprendi que para uma aula que dura uma hora, só se aproveitam uns vinte minutos, o resto do tempo serve para “botar ordem”, para dar orientações. Tive muitas dificuldades. Por exemplo, não sabia como contar histórias e fazer com que os alunos escrevessem ao mesmo tempo. Se eu contasse a história de Roland e de Carlos Magno, os alunos me escutavam como se eu contasse um conto de fadas e não escreviam nada. E quando escreviam, obviamente, não entendiam nada do que eu dizia, eles perguntavam se era para escrever com caneta azul, vermelha ou sublinhar [...] É extremamente difícil e eu tive uma grande agitação na sala, muito penosa, que durou mais ou menos dois meses. Durante essas dificuldades, falei disso com os meus colegas. Disse a meus colegas que eles bagunçavam e eu estava tão mais surpreso com a bagunça porque, tendo sido assistente muito jovem ainda, nunca tive a menor sombra de um problema dessa natureza. Porém lá, de cara, eu não controlava nada e os meus colegas apreciaram talvez que eu tivesse tido problemas, já que alguns me ofereceram um livro: Comment enseigner sans stress? (Como ensinar sem estresse?) Talvez eu pudesse dizer que sentia dificuldades porque meu status social me permitia dizê-lo sem ter o sentimento de vergonha. Pode ser mais duro para um professor iniciante.

Você disse que fez um “golpe de estado”.

Depois de dois meses, eu estava um pouco desesperado: eu não conseguia nunca dar a aula. E então, um dia, fiz um “golpe de estado” na sala. Disse aos alunos: de hoje em diante não quero mais ouvir ninguém falar, não quero mais ouvir ninguém rir, não quero mais agitação. Aliás, não era bagunça, era agitação. Eu disse: vocês vão colocar as suas cadernetas de correspondência, a caderneta em que se colocam as punições, no canto da mesa, e o primeiro que falar, eu escrevo a seus pais, e ele terá duas horas de castigo. E durante uma semana foi o terror, eu puni. De fato, facilitou a minha vida e tenho a impressão de que esta “crise” deu aos alunos um sentimento de segurança, já que eles sabiam que havia regras, eles sabiam que nem tudo era permitido.
Depois, as relações se tornaram bastante boas com os alunos e bastante afetuosas. É preciso reter dessa história extremamente banal que o fato de ser sociólogo pode permitir explicar o que acontece, mas não de antecipar melhor que a maioria das pessoas.

Aula 15
Avaliação: perspectivas atuais
Aprendizagens através da avaliação formativa
(RODRIGUES, 2009)
[...]
O ato de avaliar é um fato frequente nas atividades humanas; está presente de maneira espontânea, ou expressando os parâmetros de alguma instituição. Esse ato está incorporado ao sistema educativo mundial, para ser mais preciso, ao sistema escolar mundial, pois faz parte do contexto dos administradores das escolas, professores, alunos e famílias.
Avaliação é inerente e imprescindível, durante todo processo educativo que se realize em um constante trabalho de ação–reflexão, porque educar é fazer ato de sujeito, é problematizar o mundo em que vivemos para superar as contradições, comprometendo se com esse mundo para recriá-lo constantemente. (GADOTTI, 1984, p. 90)
Nos últimos anos, a avaliação assumiu grande importância nas políticas dos governos, devido ao crescimento das avaliações externas, como forma de medir a evolução educacional de um país, e, consequentemente, as escolas também passaram a trabalhar com um olhar voltado para essas avaliações externas.
Uma necessidade do contexto educacional é fazer com que nossa prática educativa seja desenvolvida, de maneira coerente, e que esteja comprometida com a promoção da transformação social e a formação de cidadãos conscientes. Para alcançarmos esse objetivo, a avaliação não pode ser um ato mecânico, no qual o professor dá atividades, o aluno as realiza, sendo lhe dado um conceito para transmitir a medição do conhecimento. A avaliação tem que ser um ato, no qual a reflexão seja inerente, contribuindo para a construção de competências técnicas e sócio-político-culturais.
De acordo com Luckesi (2002, p. 28), o processo avaliativo está relacionado ao contexto mundial educacional da época: “[...] não se dá nem se dará num vazio conceitual, mas sim dimensionada por um modelo teórico de mundo e, consequentemente de educação, que possa ser traduzido em prática pedagógica”.
Assim, avaliação, para estar a serviço da qualidade educacional, deve, entre outros, cumprir o seu papel de promoção do ensino, o qual irá guiar os passos do educador. Ela precisa possuir o caráter de contribuição para a formação do aluno, e não apenas classificar e medir aprendizagens.

Avaliação Formativa e seus Contornos

O processo avaliativo precisa ser voltado para a melhoria da aprendizagem e ajuste de processos, e assim buscar uma avaliação formativa, que fundamenta- se nos princípios do cognitivismo, do construtivismo, nas teorias socioculturais e sociocognitivas.
A avaliação formativa considera que o aluno aprende ao longo do processo, que vai reestruturando o seu conhecimento por meio das atividades que executa. Do ponto de vista cognitivo, a avaliação formativa centra-se em compreender o funcionamento da construção do conhecimento. A informação procurada na avaliação se refere às representações mentais do aluno e às estratégias utilizadas, para chegar a um determinado resultado. Os erros são objetos de estudo, pois revelam a natureza das representações ou estratégias elaboradas pelo estudante.
Matui (1995) trata a avaliação em sua concepção formativa, utilizando a designação de “avaliação dialógica”. Ele afirma que o diálogo perpassa por uma proposta construtivista de ensino, garantido um processo de intervenção eficaz e uma relação de afetividade, que contribui para a construção do conhecimento. Na perspectiva do autor, a “avaliação dialógica” será subsidiada pela diagnóstica, viabilizando a participação do aluno no processo ensino–aprendizagem.
A avaliação formativa é analisada sob a perspectiva de prognóstico, por Hadji (2001), que afirma que esta é uma avaliação que precede à ação de formação e possui como objetivo ajustar o conteúdo programático com as reais aprendizagens. Por ser uma avaliação “informativa” e “reguladora”, justifica-se pelo fato de que, ao oferecer informação aos professores e alunos, permite que estes regulem suas ações. Assim, o professor faz regulações, no âmbito do desenvolvimento das ações pedagógicas, e o aluno conscientiza-se de suas dificuldades e busca novas estratégias de aprendizagem.
Fernandes (2005) caracteriza a avaliação formativa a partir das características descritas abaixo:
1. Ativam os processos mais complexos do pensamento (Ex.: analisar, sintetizar, avaliar, relacionar, integrar, selecionar);
2. As tarefas refletem uma estreita relação e a avaliação é deliberadamente organizada para proporcionar um feedback inteligente e de elevada qualidade, tendo em vista melhorar as aprendizagens dos alunos;
3. O feedback é determinante para ativar os processos cognitivos e metacognitivos dos alunos, que, por sua vez, regulam e controlam os processos de aprendizagem, assim como para melhorar a sua motivação e autoestima;
4. A natureza da interação e da comunicação entre professores e alunos é absolutamente central porque os professores têm de estabelecer pontes entre o que se considera ser importante aprender e o complexo mundo do aluno;
5. Os alunos são deliberados, ativa e sistematicamente envolvidos no processo de ensino–aprendizagem, responsabilizando-se pelas suas aprendizagens e tendo amplas oportunidades para elaborarem as suas respostas e para partilharem o que e como compreenderam;
6. As tarefas propostas aos alunos que, desejavelmente, são simultaneamente de ensino, de avaliação e de aprendizagem, são criteriosamente selecionadas e diversificadas, representam os domínios estruturantes entre as didáticas específicas das disciplinas, que se constituem como elementos de referência indispensáveis, e a avaliação, que tem um papel relevante na regulação dos processos de aprendizagem.
O ambiente de avaliação das salas de aula induz uma cultura positiva de sucesso baseada no princípio de que todos os alunos podem aprender (p. 68-69).
Fernandes (2005) percebe o papel do professor, nesse tipo de avaliação, como o de contribuir para o desenvolvimento das competências metacognitivas dos alunos, das suas competências de autoavaliação e também de autocontrole. Uma avaliação que traz essas características contribui para que o aluno construa suas aprendizagens e para que o sistema educacional consiga melhorar as aprendizagens dos alunos.
[...]

Aula 16
Parâmetros Curriculares Nacionais e temas transversais: tecendo fios

Currículo-mapa: linhas e traçados das pesquisas pós-críticas sobre currículo no Brasil
(PARAÍSO, 2009)
Para finalizar a marcação dos caminhos e movimentos do currículo-mapa, aqui analisado, tomemos alguns casos da produção curricular pós-crítica, exemplos de mais energias lançadas no território analisado. Silva (1999) escreveu o currículo como fetiche. De forma divertida, cheia de humor e desejos, o currículo como fetiche enfeitiçou, encantou, seduziu, fez dançar.
Acabou com as mais confortantes ilusões, com as seguranças, as certezas e as proteções dos fetichistas praticantes do currículo. Deixou-nos sem chão.
Desfetichizou o currículo e, ao mesmo tempo, restabeleceu a ambiguidade, a contradição, a indeterminação, o “transitar para lá e para cá”. Borrou fronteiras.
Fez confundir, no território curricular, o legítimo com o ilegítimo, o original com a cópia, a cópia com o simulacro, o autêntico com o inautêntico. Colocou em dúvida definitivamente a autonomia do sujeito, a qual nós curriculistas não cansávamos de nos apegar. Por tudo isso, o currículo como fetiche desestabilizou, movimentou, provocou, enfeitiçou...
No mesmo ano, Corazza (1999) escreveu sobre o currículo como modo de subjetivação do infantil. Ainda posso sentir o pacote de sensações provocadas ao ouvirmos a crítica da subjetividade infantil, ao escutarmos sobre o que somos, sobre a astúcia do autoconhecimento e sobre o funcionamento dos processos de subjetivação ocorridos no domínio particular de poder-saber que escolhera para analisar. Os novos modos de enunciação do infantil (“El Nino” e “La Nina”), mostrados como demarcando a fratura da infantilidade moderna fez-nos prendermos a respiração provisoriamente, para soltarmos somente quando mencionada a infância doce do Menino Jesus, que ainda insistimos em ver em nossos currículos. Como se não bastasse, cada frase seguinte, arrepiava e atormentava-nos porque diziam da despedida e morte de um tipo de infância, produzindo “saudades da aurora querida” das nossas vidas. O currículo como modo de subjetivação do infantil machucou, abalou, estranhou...
Mas como já antecipei, o currículo-mapa não se sossega, e quando estamos traçando novos caminhos que nos tire da dor dos abalos, ele movimenta- se mais uma vez. Kroef (2001) aparece pela primeira vez naquele território para inventar “o currículo como máquina desejante”, produto/produtor de luxos/cortes em qualquer nível, direção e sentidos. O currículo máquina, atuando por meio do nomadismo curricular é, para a autora, uma possibilidade de produzir desterritorializações que interceptam os currículos oficiais e alternativos, para produzir currículos-cortes, que instauram trocas e multiplicidades.
Esse currículo-máquina provocou inseguranças, estranhamentos, impaciências, incomodações...
Já disse que o currículo-mapa quer ampliar seus territórios, povoar, contagiar. O contágio se dá mesmo naquele território, e eis que um outro curriculista, também novo naquele território, aparece no GT Currículo para atribuir novos sentidos à produção do conhecimento escolar e para mostrar que os exercícios escolares, às vezes, instauram “linhas de fuga e espaços lisos”.
Tal peripécia foi feita em um trabalho apresentado por Amorin (2000). Ele escreveu sobre a importância dos exercícios na produção dos conhecimentos escolares e não fez qualquer tipo de concessão ao que já foi significado nesse terreno. Considerou os exercícios escolares como importantes práticas que traçam territórios no campo do ensino. Defendeu que, dependendo das ações (usos, costumes, táticas e estratégias) dos que habitam esse território, fica evidente um processo de desterritorialização e de tessitura que não se atém a eixos únicos, pivotantes. Não são mesmo surpreendentes as peripécias desse currículo? O currículo-mapa aqui provocou, espantou, surpreendeu...
Essa multiplicidade de definições, invenções e percepções podem ser encontradas no território do currículo pós-crítico que analisei. Ao mapear esse currículo, pude ver que o currículo-mapa (que acaba de ser criado), em seus múltiplos caminhos e trajetos, nos faz olhar e encontrar trilhas diferentes a serem seguidas, possibilidades de transgressões em emolduramentos que supomos permanentes, em quadros que nos parecem fixos demais, em direções que nos parecem por demais lineares. O currículo-mapa apoia-se em linhas de fuga para explodir estratos, romper as raízes e operar novas conexões (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Os diferentes estudos pós-críticos do currículo “fazem rizoma em sua heterogeneidade” (ibidem).
Em a poética e a política do currículo como representação, um curriculista chamou a atenção para uma atividade cara ao currículo-mapa: a atividade poética. Poetizar no currículo significa produzir, fabricar, inventar, criar sentidos novos, inéditos. Desse modo, para que tudo isso que é enunciado no currículo-mapa não fique paralisado, fixado, permanente ou se torne “é” é preciso que perguntemos: será? Mas quanto a isso não devo me preocupar porque o movimento, o luxo, a corrente, a diferença e a repetição estão aí para bagunçar e fazer escapulir, deslizar e fugir tudo o que disse que o currículo- mapa é. “A diferença não tardará a proliferar” (SILVA, 2001, p. 14). Novos sentidos! Novos afectos! Novos devires! Novas conexões! Novas sinapses! É isto o que as produções pós-críticas do currículo têm mobilizado no currículo- mapa aqui analisado.


Aula 16
Tecnologias da informação e práticas educativas

Novas práticas de leitura e escrita:
letramento na cibercultura
(SOARES, 2002)
Espaço de escrita, na definição de Bolter (1991), é “o campo físico e visual definido por uma determinada tecnologia de escrita”. Todas as formas de escrita são espaciais, todas exigem um “lugar” em que a escrita se inscreva/ escreva, mas a cada tecnologia corresponde um espaço de escrita diferente.
Nos primórdios da história da escrita, o espaço de escrita foi a superfície de uma tabuinha de argila ou madeira ou a superfície polida de uma pedra; mais tarde, foi a superfície interna contínua de um rolo de papiro ou de pergaminho, que o escriba dividia em colunas; finalmente, com a descoberta do códice, foi, e é, a superfície bem delimitada da página – inicialmente de papiro, de pergaminho, finalmente a superfície branca da página de papel.
Atualmente, com a escrita digital, surge este novo espaço de escrita: a tela do computador.
Há estreita relação entre o espaço físico e visual da escrita e as práticas de escrita e de leitura. O espaço da escrita relaciona-se até mesmo com o sistema de escrita: a escrita em argila úmida, que recebia bem a marca da extremidade em cunha do cálamo, levou ao sistema cuneiforme de escrita; a pedra como superfície a ser escavada serviu bem, num primeiro momento, aos hieróglifos dos egípcios, mas, quando estes passaram a usar o papiro, sua escrita, condicionada por esse novo espaço, foi-se tornando progressivamente mais cursiva e perdendo as tradicionais e estilizadas imagens hieroglíficas, exigidas pela superfície da pedra. O espaço de escrita relaciona-se também com os gêneros e usos de escrita, condicionando as práticas de leitura e de escrita: na argila e na pedra não era possível escrever longos textos, narrativas; não podendo ser facilmente transportada, a pedra só permitia a escrita pública em monumentos; a página, propiciando o códice, tornou possível a escrita de variados gêneros, de longos textos.
O espaço de escrita condiciona, sobretudo, as relações entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto. A extensa e contínua superfície do espaço de escrita no rolo de papiro ou pergaminho impunha uma escrita e uma leitura sem retornos ou retomadas. Já o texto nas páginas do códice tem limites claramente definidos, tanto a escrita quanto a leitura podem ser controladas por autor e leitor, permitindo releituras, retomadas, avanços, fácil localização de trechos ou partes; além disso, o códice torna evidente, materializando-a, a delimitação do texto, seu começo, sua progressão, seu fim, e cria a possibilidade de protocolos de leitura como a divisão do texto em partes, em capítulos, a apresentação de índice, sumário.
No computador, o espaço de escrita é a tela, ou a “janela”; ao contrário do que ocorre quando o espaço da escrita são as páginas do códice, quem escreve ou quem lê a escrita eletrônica tem acesso, em cada momento, apenas que é exposto no espaço da tela: o que está escrito antes ou depois ica oculto (embora haja a possibilidade de ver mais de uma tela ao mesmo tempo, exibindo uma janela ao lado de outra, mas sempre em número limitado).
O que é mais importante, porém, é que a escrita na tela possibilita a criação de um texto fundamentalmente diferente do texto no papel – o chamado hipertexto, que é, segundo Lévy (1999, p. 56), “um texto móvel, caleidoscópico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à vontade frente ao leitor”. O texto no papel é escrito e é lido linearmente, sequencialmente – da esquerda para a direita, de cima para baixo, uma página após a outra; o texto na tela – o hipertexto – é escrito e é lido de forma multilinear, multissequencial, acionando-se links ou nós que vão trazendo telas numa multiplicidade de possibilidades, sem que haja uma ordem predefinida. A dimensão do texto no papel é materialmente definida: identifica-se claramente seu começo e seu fim, as páginas são numeradas, o que lhes atribui uma determinada posição numa ordem consecutiva – a página é uma unidade estrutural; o hipertexto, ao contrário, tem a dimensão que o leitor lhe der: seu começo é ali onde o leitor escolhe, com um clique, a primeira tela, termina quando o leitor fecha, com um clique, uma tela, ao dar-se por satisfeito ou considerar-se suficientemente informado – enquanto a página é uma unidade estrutural, a tela é uma unidade temporal. Lévy (1993, p. 40-41), em tópico que denomina significativamente e, esperemos, também exageradamente de Réquiem para uma página, compara a leitura do texto na página com a leitura do hipertexto:

Quando um leitor se desloca na rede de microtextos e imagens de uma enciclopédia, deve traçar fisicamente seu caminho nela, manipulando volumes, virando páginas, percorrendo com seus olhos as colunas tendo em mente a ordem alfabética. [...] O hipertexto é dinâmico,está perpetuamente em movimento. Com um ou dois cliques, obedecendo por assim dizer ao dedo e ao olho, ele mostra ao leitor uma de suas faces, depois outra, um certo detalhe ampliado, uma estrutura complexa esquematizada. Ele se redobra e desdobra à vontade, muda de forma, se multiplica, se corta e se cola outra vez de outra forma. Não é apenas uma rede de microtextos, mas sim um grande metatexto de geometria variável, com gavetas, com dobras. Um parágrafo pode aparecer ou desaparecer sob uma palavra, três capítulos sob uma palavra ou parágrafo, um pequeno ensaio sob uma das palavras destes capítulos, e assim virtualmente sem fim, de fundo falso em fundo falso. [...] Ao ritmo regular da página se sucede o movimento perpétuo de dobramento e desdobramento de um texto caleidoscópico.

Em síntese, a tela, como novo espaço de escrita, traz significativas mudanças nas formas de interação entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto e até mesmo, mais amplamente, entre o ser humano e o conhecimento.
Embora os estudos e pesquisas sobre os processos cognitivos envolvidos na escrita e na leitura de hipertextos sejam ainda poucos (ver, por exemplo, além das já citadas obras de Lévy, também Rouet, Levonen, Dillon e Spiro, 1996), a hipótese é de que essas mudanças tenham conseqüências sociais, cognitivas e discursivas, e estejam, assim, configurando um letramento digital, isto é, um certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição – do letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel. Para alguns autores, os processos cognitivos inerentes a esse letramento digital reaproximam o ser humano de seus esquemas mentais; Ramal (2002, p. 84) afirma:

Estamos chegando à forma de leitura e de escrita mais próxima do nosso próprio esquema mental: assim como pensamos em hipertexto, sem limites para a imaginação a cada novo sentido dado a uma palavra, também navegamos nas múltiplas vias que o novo texto nos abre, não mais em páginas, mas em dimensões superpostas que se interpenetram e que podemos compor e recompor a cada leitura.

Também Bolter (1991, p. 21-22) afirma que a escrita no papel, com sua exigência de uma organização hierárquica e disciplinada das ideias, contraria o luxo natural do pensamento, que se dá por associações, em rede – segundo esse autor, é o hipertexto que veio legitimar o registro desse pensamento por associações, em rede, tornando-o possível ao escritor e ao leitor.

2 comentários:

  1. Oi gostarei de tirar um dúvida:
    quero fazer serviço social, mas o curso mais perto da minha cidade fica longe, cerca de 02 hs de distancia ;/
    Gostaria de saber se eu fizer pedagogia e depois serviço social tem alguma matéria - se sim quais - eu estaria cortando?

    Obrigada.

    Pode responder pelo e-mail
    rapha.christante@yahoo.com.br

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  2. Bom Raphaela eu não sei te informar mas escre ve no nosso bate papolateral quem sabe alguma colega não sabe...
    bjs e bons estudos

    ResponderExcluir

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