O QUE É, AFINAL, A
GEOGRAFIA ?
Peter
Gould (Pennsylvania
State University)1
A cena era típica
daquele extraordinário ritual a que damos a nome de festa. Por toda
a sala, o anfitrião recebia seus convidados com expressões usuais
como: “ Que alegria por você ter vindo”, ou “As bebidas estão
ali; sirvam-se à vontade:”, enquanto aqueles que participavam do
“jogo”, assumiam o seu bem-praticado e seguro modo de olhar, na
esperança de ver, entre os presentes, algum conhecido. Pequenos
grupos de pessoas, conversando às vezes com um entusiasmo forçado,
transformavam-se, frequentemente, em “fortalezas inexpugnáveis”...
Mas, todos engajavam-se em sua conversação, de modo a,
deliberadamente, evitar a impressão de estarem isolados em relação
aos restantes...
Premido
pelo número crescente de recém-chegados, deixei o bar e me dirigi
para as proximidades de uma janela, um pouco afastada de toda aquela
confusão. Alí, eu vi aquela moça, examinando as flores, com um
cuidado que me pareceu profissional. “Rosas ?”, eu disse,
querendo parecer inteligente, mas com a consciência de que nunca
tinha sido muito bom no que se refere a flores. “-Peônias”,
respondeu ela. “Pelo menos ... é o que acho !” “-Oh! Que
tolice a minha (repliquei) ... e esta parece ter sido uma primavera
maravilhosa para as flores !”
“Sim,
maravilhosa! As primaveras são sempre boas para as flores!”
Percebendo
que aquele assunto não nos levaria muito longe, ... ela procurou
falar sobre algo que prolongasse nossa conversa, e fez, então, a
primeira pergunta que lhe passou pela cabeça – “ E você, o que
faz ?”.
“Oh!”,
eu disse, agradecido pela nova alternativa; “sou um geógrafo!”
E, no mesmo momento em que acabava de pronunciar aquelas palavras, já
podia prever que o embaraço de uma explicação mais longa viria
automaticamente.
“ –
Um geógrafo ?”
“Ah
... eh ... sim, um geógrafo” afirmei, procurando demonstrar a
serena e entusiástica confiança com que falam de suas profissões
os médicos, engenheiros, pilotos, caminhoneiros, marinheiros e, até,
os andarilhos:”
“-
Mas, ... o que fazem os geógrafos ?”
Isto
já tinha acontecido muitas vezes... Aquele sentimento frustrante que
se manifesta quando você, um geógrafo profissional, sente-se
incapaz de explicar de maneira simples e rápida o que você
realmente faz. Um de nós poderia dizer - : “eu vejo o mundo a
partir de uma perspectiva espacial ....”, ou, “na realidade, sou
um analista espacial”, o que, sem dúvida, seria correto ... até
certo ponto ! Acontece, que tais explicações podem não ter
significado algum para muita gente.
Uma
outra forma comum de resposta é aquela que usa uma abordagem
diretamente ligada a algum exemplo - : “Bem, no momento estamos
trabalhando em um modelo de maximização de entropia, para avaliar
os movimentos pendulares das jornadas de trabalho, em Bogotá” ...
ou, então: “Bom, estamos usando um modelo de simulação
computacional, em parte estocástico, em parte determinístico, para
examinar ... um programa de desenvolvimento regional”. E esses dois
exemplos estariam, igualmente, corretos ... até um certo ponto!
Porém, essas palavras, que têm um significado preciso para muitos
membros da comunidade dos geógrafos, certamente não terão o menor
sentido para a maior parte das pessoas, e acabarão por serem
consideradas como um jargão particular, deliberadamente criado para
confundir os outros. O que poderia, também, ser verdadeiro ... até
certo ponto !
Assim,
ocorre frequentemente que, em uma tentativa desesperada de se
construir uma ponte na direção do interlocutor e na direção de
vocábulos e conceitos mais comuns, acaba-se por fazer a opção por
uma resposta bem mais simples, se bem que incompleta: “Bem, na
realidade, ensino Geografia !!!
E o interlocutor, aliviado e, muitas
vezes, já com um sorriso nos lábios, vem com a pergunta inevitável:
“Ah! ... verdade ? ..., então, qual é a capital do Dakota do
Norte ?”
A
pergunta não tem que ser necessariamente sobre o Dakota do Norte !
Ela pode ser feita sobre as minas de carvão do Yorkshire, sobre o
mais longo rio do mundo, o clima da região de Perth (Austrália), a
população da Índia, ou os mais importantes produtos de exportação
do Zaire – embora raros sejam aqueles que fazem a pergunta, que
saibam ao menos como pensar sobre o Zaire! ... Exceto os geógrafos,
naturalmente !!! – Pois, não são os geógrafos que devem saber
tudo sobre ONDE estão as coisas, e PORQUE elas estão ali ?
Embora
com uma certa dose de humor, o tipo de conversação que se acabou de
relatar reflete justamente o tipo de visão que a maior parte das
pessoas tem sobre o que a Geografia é, e sobre o que os geógrafos
fazem! E, numa medida, esta visão é correta, ... até certo ponto.
Na
verdade, nós, geógrafos, temos a responsabilidade de ensinar as
crianças sobre o mundo no qual elas estão crescendo, do mesmo modo
que outros têm a responsabilidade de ensinar a elas sua língua, a
matemática e uma visão de sua herança histórica e artística,
entre outras coisas. Colocadas em um mundo que elas não ajudaram a
construir, essas crianças só podem compreendê-lo (e agir sobre
ele) na medida em que nós (adultos) pudermos ajudá-las através da
transferência de nossas visões sobre as palavras, os números, a
beleza, o tempo e o espaço.
E
o espaço ? Não aquele espaço sideral da ficção científica que
lentamente vai, também, se abrindo para nossos instrumentos, mas
este espaço de nossa vida cotidiana e imediata, o ESPAÇO GEOGRÁFICO
de nossa pequena casa planetária.
Fala-se,
cada vez mais, de nosso mundo em transformação, do crescente
impacto das sociedades sobre o meio-ambiente, da influência de uma
cultura sobre as outras, da interdependência cada vez maior dos
povos e das nações. Sabe-se que hoje, mais do que nunca, os eventos
de uma parte do mundo tem um impacto direto e imediato sobre as
outras. Mas, muito poucas crianças – e isto quer dizer, também,
poucos adultos – possuem as mais elementares informações sobre o
cenário mundial, visto em seu conjunto, e muito menos ainda sobre os
atores que produzem um caleidoscópio, constantemente em movimento,
de cidades e povoados, estradas e regiões, conflitos e formas de
cooperação.
No
domínio físico, para se tomar apenas um exemplo, se El Niño, a
corrente oceânica localizada ao largo do Chile e do Peru, muda seu
curso normal, surgem problemas sérios para a indústria pesqueira
dos países vizinhos mas, seu efeito se estende muito mais longe,
provocando provavelmente secas na longínqua Austrália.
Mas,
de que adianta os meios de comunicação inundarem nossas casas com
todas essas informações sobre o mundo físico e humano em que
vivemos, se não conhecemos, se não sabemos “representar” em
nossas mentes, os grandes espaços continentais e oceânicos, os
países, as regiões, os lugares ?
Sim,
os geógrafos tem a responsabilidade de ensinar sobre os lugares, as
regiões, os espaços, os rios e montanhas, as estruturas e conexões,
e todas as interrelações do mundo no qual vivemos. De outra
maneira, como pode esse nosso mundo fazer algum sentido, Ter algum
significado ?
Mas,
como já disse, esta tradicional – mas ainda vital – tarefa do
ensino tradicional e elementar, representa apenas uma parte de um
conjunto muito maior. A outra parte desenvolve-se, atualmente, nas
universidades e nos estabelecimentos de pesquisa de muitos países,
em firmas de consultoria e nas empresas, nas instituições de
planejamento urbano, regional e nacional, e nas mais diferentes
agências governamentais e supranacionais, como a Organização
Mundial de Saúde e o Banco Mundial, por exemplo.
Uma
das importantes características dos acontecimentos dos últimos
trinta anos foi a maneira pela qual a perícia do conhecimento
geográfico – a perspectiva espacial – tem informado e
esclarecido problema após problema, em um amplo espectro de
preocupações humanas. Os geógrafos tem feito pesquisas
fundamentais que vão desde orientações para que pessoas com
problemas de incapacidade física possam guiar-se em complexas áreas
urbanas; estudos de distribuição espacial de doenças, para que os
cuidados médicos sejam dispensados de maneira mais adequada;
passando pelo planejamento de novas regiões agrícolas, ou pela
avaliação de colheitas, através das imagens de satélite; até
chegar às pesquisas que procuram contribuir para a solução dos
problemas de redes urbanas desequilibradas ou de periferias urbanas
desorganizadas; para chegar, mais recentemente, aos estudos de
percepção das imagens mentais que ajudarão a revolucionar campos
como os do planejamento urbano / regional e do turismo.
A
reação de muita gente, diante desses dados está explícita na
expressão: “- Mas, nunca imaginei que os geógrafos fizessem esses
tipos de coisas!”
De
fato, eles as fazem – e muito mais!
Por
isto, escrevi este livro. Da próxima vez em que alguém perguntar-me
em uma festa: “- Oh! Você é um geógrafo ? ... Eh ... Eh ... mas,
o que você faz exatamente ?”... vou responder: “ – Estou muito
contente por você ter feito esta pergunta. Acabo de escrever um
livro sobre mim mesmo ... aceite-o!
1
Traduzido e adaptado pelo prof. Oswaldo Bueno Amorim Filho, de -:
GOULD, P. The Geographer at Work. London,
Routledge & Kegan Paul, 1985, 351p.
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